Críticas AdoroCinema
4,5
Ótimo
Ferrugem

Um vilão de nosso tempo

por Taiani Mendes

Um otimista, Marshall McLuhan teorizava nos anos 1960 sobre os meios tecnológicos como extensões do corpo humano, capazes de ampliar suas capacidades e performances. Na abertura de Ferrugem, filme de Aly Muritiba, não escapa aos olhos que ele estava correto em seus prognósticos.

Visitando um aquário, celulares em punho, adolescentes tiram selfies, fotos, compartilham, curtem, deixando em último na lista de prioridades a apreciação através diretamente dos olhos do ser fantástico que está à sua frente e obrigando o professor a fazer o famoso papel de velho, chamando a atenção para a vida fora da tela. Ela existe e Tati (Tiffanny Dopke) é lembrada disso de maneira terrível na primeira parte do drama, dedicada à sua história.

Seduzir, em 2018, além (ou como alternativa) de fazer a pessoa se interessar por você em carne e osso, envolve a conquista pela imagem virtual, e assim a jovem permite que o crush Renet (Giovanni de Lorenzi) fuxique a galeria de seu celular. Match garantido e logo interrompido pelo desaparecimento do aparelho, situação chata que culmina na divulgação de um vídeo íntimo da garota no grupo da escola. Tati não apenas perde uma parte de seu corpo (o smartphone), mas tem o resto dele exposto em praça pública ao linchamento. Não estava explícito no pensamento de McLuhan que as capacidades nocivas também seriam potencializadas, mas não restam dúvidas.

A segunda parte do longa é sobre Renet e funciona como um diagnóstico, uma investigação das origens do que foi apresentado na primeira. O barulhento ambiente da escola é trocado por uma serena casa de praia, os pais nunca vistos de Tati dão lugar a adultos presentes e a ideia é quase de oposição completa, salvo a manutenção do celular enquanto amigo inseparável do adolescente. Caladão e apelidado de “Autista”, Renet tem como parceiro o primo Normal (Pedro Inoue), não dialoga com a irmã e foge da mãe. Presente desde o início, a misoginia mostra sua face desmascarada neste trecho, que versa sobre homens que se impõem desafios que são incapazes de cumprir, covardes, perdidos, protetores dos seus e acostumados a resolver na agressão. Estão na época dos obsessivos compartilhamentos de vídeos de sexo e morte via WhatsApp, mas ao mesmo tempo parece que não. Esses gostos não são de hoje, de qualquer forma, só os meios de difusão mudaram, ampliando o alcance e sua velocidade.

Apesar de tudo, Renet, rapaz de nome unissex, ainda tenta fugir à norma. Cabisbaixo e isolado como Tati, unidos pelo desejo, pela vergonha, pela culpa, pela incomunicabilidade e as mensagens nunca respondidas. Surge então a necessidade do contato à moda antiga, mas as extensões ainda serão removíveis? Ainda dá tempo de mudar? Ainda existe o que consertar?

Os adultos, que têm no cigarro o vício, também fazem parte do debate sobre a crise da comunicação e a masculinidade tóxica, e Enrique DiazClarissa Kiste brilham numa longa sequência de carro que representa um dos grandes momentos do filme. Não está somente na habilidade de colocar tecnologia, memes e redes sociais de forma fluida na narrativa a força do cinema de Aly. Trata-se do encontro/confronto de dois mundos, como os dois estilos que marcam os capítulos desta pungente obra que observa a dissolução das fronteiras da realidade com a virtualidade. Ficamos mais insensíveis e vulneráveis.

Filme visto no 46º Festival de Gramado, em agosto de 2018.