Críticas AdoroCinema
2,0
Fraco
Legalidade

Não vai ter golpe

por Francisco Russo

Por mais que o cinema brasileiro tenha uma diversidade de temas impressionante, o mesmo nem sempre ocorre em relação a gêneros. Desde a Retomada, lá em 1995, poucos foram os épicos que resgataram um pouco da história nacional, ainda mais aqueles que enveredaram pelo viés político. Legalidade surge para suprir esta lacuna, narrando a história do movimento que dá título ao filme que, em 1961, fez com que o então governador Leonel Brizola liderasse um levante popular no Rio Grande do Sul para assegurar a posse do vice-presidente João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros. Uma história por muitos esquecida, em parte devido ao fatídico golpe militar ocorrido três anos mais tarde, mas que tão bem exemplifica o cenário político e social do país na época.

De forma a tornar esta história mais acessível ao grande público, o diretor Zeca Brito fez uma opção bem intencionada, mas ao mesmo tempo questionável. Além de narrar os fatos em si, através de um longo processo de pesquisa que permeou de documentários a livros obscuros, passando por testemunhas oculares do ocorrido, inseriu no roteiro um trecho considerável inteiramente ficcional, com ares de romance barato. Desta forma, se há Brizola bradando em nome da Constituição em discursos radiofônicos potentes, há também um surrado (e surreal) triângulo amoroso envolvendo dois irmãos e uma jornalista enviada pelo The Washington Post, metáfora também à infiltração norte-americana em solo brasileiro. A inspiração não poderia ser mais explícita: Casablanca.

Assim como o fenomenal filme estrelado por Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, aqui a ideia é se apropriar de um fato histórico para romanceá-lo com pitadas ideológicas. Não por acaso, a sequência no trem onde os passageiros assoviam como forma de resistência aos soldados presentes é bem parecida com a icônica cena da Marselhesa, conceitualmente. A bem apurada ambientação, com um cuidado especial tanto no figurino quanto na direção de arte, também ajudam a mergulhar no período retratado. Entretanto, há no filme uma assustadora ingenuidade narrativa, seja nos caminhos delineados pelos personagens ou mesmo por falhas grotescas de execução.

Um exemplo: em determinada cena, a personagem de Letícia Sabatella recebe um jornal histórico e, sem o menor pudor ou necessidade, o rabisca com uma caneta. Outro: a sequência de abertura mostra Cleo Pires chegando ao Palácio Piratini, sede do governo estadual, focando inicialmente apenas em suas pernas e, em determinado momento, dando um close absolutamente gratuito em sua bunda. Mais um: o primeiro encontro entre Brizola e a jornalista Cecilia Ruiz traz a mesma Cleo claramente rouca, como se percebe de forma ainda mais escancarada ao comparar seu timbre de voz com a cena seguinte. O último (neste texto): na sequência em uma missão indígena, é possível ver caminhões passando ao fundo.

Entretanto, pior que tais desleixos é a forma novelesca como é estabelecido o relacionamento entre Cecilia e os irmãos Luiz Carlos (Fernando Alves Pinto, fazendo o que pode) e Tonho (José Henrique Ligabue, o melhor do trio), sem convencer em momento algum. Em parte pela má atuação de Cleo Pires, de uma empáfia que a coloca sempre um tom acima de todos à sua volta, mas também por escolhas de narrativa frágeis e desnecessárias, como as ardentes cenas de sexo que surgem de forma exagerada em momentos inoportunos. Soma-se a isto a subtrama protagonizada por Letícia Sabatella, que poderia facilmente ser limada do filme, também para poupar o espectador da péssima sequência final.

Diante de tantos problemas em sua área ficcional, o que segura Legalidade é seu caráter histórico. Em parte devido à boa atuação de Leonardo Machado como Leonel Brizola, assumindo o porte e a entonação típicas do político, especialmente nos momentos em que precisa incitar a população. Além disto, a inserção de cenas da época dá uma certa grandiosidade ao feito, no sentido de comprovar a veracidade do exibido. A potência da palavra na luta contra o possível golpe ao vice-presidente eleito pela população é, também, bem explorada pelo longa-metragem.

Dividido em dois setores praticamente iguais, Legalidade é um filme bipolar que mostra competência ao retratar o que de fato aconteceu e desleixo quando precisa criar a partir disto. Se é válido como retrato de uma época por muitos esquecida, e também como exemplo da força de um líder político perante a população, fracassa de forma retumbante quando tenta estabelecer um triângulo amoroso insípido e artificial ou mesmo apresentar alguma relação com o pós-ditadura. De positivo, fica também o apuro técnico demonstrado no longa-metragem, especialmente na recriação dos anos 60 e mesmo ao conseguir rodar cenas importantes dentro do próprio Palácio Piratini.

Filme visto no 47º Festival de Gramado, em agosto de 2019.