Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Parasita

A gente do andar de baixo

por Bruno Carmelo

Este filme se abre com a imagem de uma pilha de meias secando perto da janela estreita da casa de Ki-Taek. Ele mora num “andar intermediário”, espécie de porão cuja vista dá para uma lixeira onde um morador de rua costuma urinar. Os quatro membros da família estão constantemente sujos, transitando entre cômodos apertados enquanto buscam alguma rede gratuita de WiFi nas vizinhanças. A descrição desta família é comicamente grotesca, assim como será grotesca a descrição burguesa da família Park. Estes últimos habitam a casa espaçosa criada por um arquiteto famoso, onde os quatro membros se espalham pelos quartos e se entediam com toda a tecnologia e objetos à disposição. Os dois núcleos constituem opostos idênticos (pai, mãe, filha e filho), como o reflexo de um espelho.

O diretor Bong Joon-ho parte para uma visão assumidamente caricatural das classes sociais, cuja estratificação é representada pela estrutura literal das casas – vide o sobrado dos ricos, o meio-andar dos pobres e um porão, nível ainda mais precário que desempenhará um papel importante na trama. Enquanto a riqueza dos Park os torna ingênuos e ignorantes (sem curiosidade pelo mundo ao redor devido ao comodismo de suas posses), a pobreza dos protagonistas motiva a malandragem, a habilidade de criar de todas as artimanhas possíveis para ascenderem socialmente. Não demora até que as famílias se encontrem e os desempregados consigam se infiltrar na casa rica, um a um, ganhando a confiança dos novos patrões. A noção de parasitismo sugerida pelo título funciona à perfeição para descrever o conflito central.

A primeira metade da narrativa constitui uma deliciosa farsa cômica. Os planos bolados por pai (Song Kang-ho), mãe (Chang Hyae-jin), filha (Park So-dam) e filho (Choi Woo-sik) são tão simples quanto hilários, funcionando unicamente graças à inocência dos Park. O diretor não se priva de criar cenas realmente exageradas, apostando no humor físico e nos golpes do destino que contribuem ao êxito da missão. O espectador precisa manifestar alto grau de indulgência para acreditar em algumas das reviravoltas, assim como em determinados elementos de suspense introduzidos ao longo do caminho. Joon-ho está muito mais interessado no valor simbólico das ações e personagens do que na verossimilhança da trama, que se converte numa fábula alegórica de formigas e cigarras, raposas e galinhas.

Felizmente, à medida que o suspense se instaura, Parasite toma a precaução de expandir o escopo social e visitar outras famílias em situação tão precária quanto aquela dos protagonistas. Este é o momento de revelar as diferentes maneiras de lidar com as dificuldades, para que o parasitismo de Ki-Taek e seus familiares não seja visto como a única saída possível. A cena de inundação se revela particularmente eficaz para afetar os andares de baixo enquanto preserva os andares de cima. Esteticamente, o projeto demonstra a elegância pragmática do diretor, que jamais sacrifica a compreensão em nome da beleza. O cineasta faz prova de excelente domínio de tons, dirigindo o escracho, o drama comovente e o suspense sombrio de modos distintos, porém orgânicos e permeáveis entre si.

Por fim, não surpreende que a narrativa se encaminhe à tragédia. O roteiro enxerga na violência o único desfecho possível para o choque entre a pobreza extrema e a riqueza ostentatória, entre a educação hipócrita do patrão (que até gosta dos empregados, apesar de terem “cheiro de metrô”) e a agressividade represada dos funcionários. O filme constrói uma bomba-relógio, acentuando as diferenças e as injustiças sociais até vê-las explodirem num clímax sangrento. Deste modo, representa de modo alegórico a luta de classes, as ideias de posse e de apropriação na era contemporânea. É louvável que o texto dedique um espaço privilegiado para os telefones celulares, as “varandas gourmet”, os quartinhos dos fundos – tantos elementos representativos dos tempos em que vivemos.

Quando o filho se encontra diante de um grave problema, tenta se colocar no lugar do amigo rico: “O que Min faria nessa situação?”, pergunta. A irmã (a excelente Park So-dam, plena de sarcasmo) responde: “Min nunca se encontraria nessa situação”. Talvez este seja o melhor resumo do discurso tragicômico, segundo o qual a mobilidade social é uma ilusão, e os sonhos hollywoodianos de conciliação afetiva entre ricos e pobres merecem ser ridicularizados. Para que uma família ocupe a casa dos Park, símbolo máximo do sucesso, é preciso que outra se retire, nem que seja pela força. Para ascender ao topo da pirâmide, o único caminho é a guerra.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.