Críticas AdoroCinema
2,0
Fraco
Cadáver

O que os demônios querem?

por Bruno Carmelo

Depois de tantos filmes sobre forças demoníacas possuindo jovens garotas, retorcendo os seus corpos e girando crucifixos na parede, talvez seja melhor dar um passo atrás e fazer uma pergunta essencial: o que, afinal, os demônios querem? O que buscam esses personagens nos filmes de terror? Em se tratando de uma força maligna, eles detestam padres, bíblias e terços – até aí, sem problemas. Mas por que invadir tantos corpos femininos, por que fazer objetos voarem, por que às vezes agem sem tocar nos corpos, apenas com o poder do pensamento, e às vezes adquirem uma força surpreendente, atacando suas vítimas? Como escolhem os alvos, e por que poupam alguns deles? O que os demônios obtêm através destas manifestações?

Estas perguntas vêm à mente diante de uma produção como Cadáver. A primeira cena traz o típico exorcismo de uma garota de cabelos loiros e roupa branca, com direito a corpos retorcidos, vozes grossas, padres corajosos e olhos coloridos como prova de possessão. Pouco tempo depois, o cadáver da garota chega ao necrotério onde trabalha Megan (Shay Mitchell). Um incidente deixa claro que o corpo está possuído por alguma entidade sobrenatural. Num primeiro momento, a morta começa a mover objetos ao redor, embora permaneça imóvel sobre a maca. Depois, se levanta e ataca pessoas ao redor, atravessando paredes como se fosse invisível. Em seguida, se regenera e pratica novos assassinatos com o corpo próximo do humano comum.

A inconsistência no modus operandi do cadáver de Hannah Grace ilustra a dificuldade de explorar forças demoníacas como personagens de cinema. Eles são capazes de praticamente qualquer ação – mais do que muitos super-heróis e vilões por aí – o que produz inverossimilhanças óbvias: por que o corpo possuído não se levanta logo e passa a atacar suas vítimas? Por que começa com indícios, insinuando-se, até passar à ação? Se a vilã possui uma força surpreendente, porque não rasga o saco mortuário e sai? Talvez a resposta mais óbvia seja que não haveria longa-metragem se a personagem demonstrasse toda a sua potência desde o início. Por isso, apenas para o prazer do espectador, a falecida esconde o seu jogo, manifestando-se quando interessa ao roteiro.

Esta força demoníaca possui senso de espetáculo, e guarda umas cartas na manga para a plateia. O aspecto de sedução, ou de malícia, torna a personagem muito difícil de levar a sério – e, portanto, de temer. Os demônios são transformados em figuras não apenas exibicionistas, mas também aleatórias: eles podem estrangular uma pessoa com o poder da mente, porém um minuto mais tarde, morrem atacados por um travesseiro. Cadáver sofre do raciocínio segundo o qual o mal é onipotente e onipresente, porém pouco inteligente, contentando-se em ser ora uma presença invisível, ora um fantasma, às vezes uma entidade animalesca que anda pelas paredes, e em outros momentos uma figura humana navegando entre a bruxa e o assassino em série.

A construção frágil da personagem não é exclusividade desta produção – ela se torna um aspecto central em A AutópsiaRenascida do Inferno e na franquia Atividade Paranormal, por exemplo -, mas é acentuada pelas escolhas de direção. O diretor Diederik van Rooijen trabalha com ataques óbvios demais, inviabilizando a ambiguidade tão importante aos filmes que navegam entre o natural e o sobrenatural. Os instrumentos de laboratório tremendo e as feridas cicatrizando sozinhas são elementos que jamais poderiam ser confundidos com algum fenômeno científico, o que torna evidente a presença de uma força demoníaca. Por isso, o ceticismo de Megan não constitui um conflito de peso: ela se vê imediatamente obrigada a acatar a presença de um elemento paranormal no necrotério. 

Além disso, cada susto é antecipado pela trilha sonora e pela montagem, diluindo a força dos ataques, e o ambiente do hospital e do necrotério são exageradamente escuros. Como se não bastassem estes elementos, a galeria de personagens coadjuvantes é bastante caricata (Stana KaticGrey Damon possuem atuações muito fracas), os diálogos são frágeis e as interações entre Megan e Hannah se tornam cada vez mais intensas e absurdas. Em outras palavras, Cadáver abre mão da verossimilhança na tentativa de provocar mais medo, sem perceber que a tensão se perde conforme se afasta de conflitos plausíveis.

Pelo menos, Shay Mitchell se esforça para construir um misto de potência e fragilidade à ex-policial traumatizada, e o diretor consegue fornecer algumas cenas elegantes através do formato em scope e do ambiente minimalista do necrotério. Além disso, as cenas iniciais se preocupam em inserir Megan numa vida de subúrbio, com fotografia devidamente fria e contrastada, representando a dificuldade das classes desfavorecidas – Rocky, um Lutador aparenta ser uma referência direta para este modo de filmar os marginais. Em outras palavras, existe um pensamento, um cuidado na hora de desenvolver a personagem humana. Infelizmente, diante dela se encontra uma enésima manifestação incoerente de força demoníaca.