Críticas AdoroCinema
1,5
Ruim
Pelé - O Nascimento de uma Lenda

A fábrica de sonhos

por Bruno Carmelo

Mistério do cinema: algum elemento na paixão nacional pelo futebol nunca se traduziu muito bem nas telas. Mas não foi por falta de tentativa. O cinema brasileiro produziu dezenas de ficções e documentários sobre o tema (O Futebol, Campo de Jogo, Boleiros), nenhum com grande destaque nas bilheterias. Talvez o público do esporte não seja o mesmo das salas escuras; talvez a representação do futebol retire a espontaneidade e o senso de urgência das partidas. De qualquer modo, Pelé já recebeu outra tentativa de popularização nos cinemas. Em 2004, o documentário Pelé Eterno foi lançado. Fracassou.

Agora, Pelé - O Nascimento de uma Lenda tenta uma abordagem sensivelmente diferente, visando o público estrangeiro. A produção é financiada por americanos, dirigida por americanos, e traz um Brasil no qual os moradores das favelas falam inglês. Este deve ter sido apenas um detalhe para os produtores, porém o efeito é a imediata artificialidade. A língua está atrelada à cultura, e o linguajar específico das favelas encarrega-se de transmitir a comunicação de uma classe socioeconômica particular. A solução encontrada foi uma incômoda fusão entre português e inglês: os garotos dizem algo como “Poxa, mãe, I want to play soccer!”.

As imagens aprofundam a impressão teatral. O diretor de fotografia Matthew Libatique, elogiado por produções como Mãe! e Réquiem Para um Sonho, aposta num registro saturado de cores, de câmeras lentas, de flares enfeitando cada imagem. O filme se desenvolve como um longo spot publicitário, no qual as bolas de futebol, encobertas de terra, liberam pó pelos ares quando voam, enquanto os garotos negros brilham ao pôr do sol alaranjado – o dia inteiro é pôr do sol, o dia inteiro é alaranjado.

A noção da pobreza como sinônimo de pureza é explorada sem meios termos. Durante o lançamento de Cidade de Deus (2002), a teórica Ivana Bentes tinha sugerido o termo “cosmética da fome” para descrever a miséria embelezada para os olhos da classe média. Naquele caso, os atores tinham sido besuntados de óleo, para as suas peles brilharem mais. Só os atores negros, vejam bem. Como se eles precisassem ser adornados para se tornarem bonitos... O conceito foi descartado após debates, mas em casos como este, mereceria ser discutido mais uma vez.

E quanto a Pelé? E o futebol, o humanismo, o esporte brasileiro? Os atores fazem o possível para trazer verossimilhança ao mundo de sonhos. Seu Jorge já provou a eficiência em muitos outros projetos, e Mariana Nunes é capaz de transmitir emoções complexas apenas com o olhar – vide sua participação no recente Zama. Ambos se esforçam nos momentos melodramáticos, ao lado de bons garotos novatos interpretando Pelé. O roteiro aposta na trajetória hiperbólica do azarão: durante a Copa do Mundo de 1958, o Brasil é visto como o mais improvável de todos os países, e Pelé como o menos indicado para a partida.

O final da história, todos conhecemos. Bandeiras brasileiras vibram, os personagens elogiam a nossa “ginga”, o tal primitivismo apontado pelos estrangeiros, o senso de improviso, a alegria de viver. O roteiro confunde a adaptação dos jogadores pobres à falta de recursos com um estilo inerentemente animalesco. Ou seja, confunde o biológico e o cultural. Os jogadores brasileiros, negros em especial, muitos com limitações físicas, são vistos como esta espécie deslumbrante por seu exotismo, apaixonantes por serem tão pouco civilizados. O elogio desprovido de empatia se torna a máscara do preconceito.

No que diz respeito à História nacional, os traços maiores estão presentes – os resultados dos jogos, os nomes dos jogadores, dos países, a lesão antes da partida, algumas características principais dos personagens. Pelé é transformado em herói, gênio antes de seu tempo, esportista inovador, símbolo nacional. Não existe ambiguidade na história visando reforçar o status de lenda. Os irmãos Zimbalist inserem o ídolo no mundo cor-de-rosa da meritocracia e das exceções que desejam se passar pela regra.