Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
O Abismo Prateado

Percalços da dor

por Francisco Russo

Quando você me deixou, meu bem,

Me disse para ser feliz e passar bem.

Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci,

Mas depois, como era de costume, obedeci.

Quando você me quiser rever

Já vai me encontrar refeita, pode crer.

Olhos nos olhos

Quero ver o que você faz

Ao sentir que sem você eu passo bem demais

A canção “Olhos nos Olhos”, composta por Chico Buarque, é ao mesmo tempo dura e esperançosa. Dura pela situação apresentada, a do abandono repentino e a inevitável dor decorrente dele; esperançosa por mostrar que tamanha aflição será superada. Trata-se de um retrato da vida, no difícil período entre o término de um relacionamento e a superação dos traumas deixados por ele. Por ser um tema universal, “Olhos nos Olhos” é daquelas músicas que tocam por mexer com questões profundas. O Abismo Prateado, o filme baseado na canção, não apenas reconhece a essência deste conteúdo como busca reproduzi-lo em cena. De uma forma bem minimalista, com muita câmera no rosto, para acompanhar a trajetória da dentista Violeta, que um belo dia recebe, sem mais nem menos, o aviso do marido de que irá embora para sempre. Detalhe extra: deixado na secretária eletrônica do celular dela, forma mais impessoal impossível.

A partir de então tem início o desatino de Violeta. Após ver seu mundo ruir e sem saber o que fazer, ela simplesmente perambula pelo Rio de Janeiro em busca de uma solução, qualquer que seja. O que Violeta faz, na verdade, não importa. Importa o que ela sente, e é neste ponto que entra em cena a proposta do diretor Karim Aïnouz. Repleto de silêncios e closes, com algumas sequências tendendo para o lado sensorial, O Abismo Prateado é na verdade um olhar íntimo sobre aquele momento tão difícil da vida de Violeta. Assim como na canção, ela foi deixada. Da mesma forma, enlouqueceu. Diante de um turbilhão de emoções, precisa encontrar um meio de seguir em frente e se recompor.

Com um nítido interesse maior no lado emocional do que nos acontecimentos que envolvem sua personagem principal, o longa-metragem necessita que o espectador embarque na proposta para que seja, enfim, aceito e até mesmo compreendido. O Abismo Prateado não é um filme de grandes atos, o que pode pode até desagradar quem espera por uma história com início, meio e fim. Há várias lacunas propositalmente deixadas no ar, porque na verdade as respostas não são importantes. O filme é apenas um recorte daquele momento único, o do desespero, sem compromisso com passado ou futuro. Ele termina em si mesmo.

Diante de tal proposta, é de se elogiar o desempenho de Alessandra Negrini. Bastante exposta, nem tanto fisicamente mas especialmente pelo lado emocional, ela segura com garra esta personagem que passa por uma transformação radical em questão de momentos. É visível sua dor, mesmo quando tenta controlá-la para demonstrar uma certa sobriedade. Trata-se de um trabalho corajoso pela entrega ao papel, ainda mais pelo fato de que o filme mal tem personagens coadjuvantes que a amparem. Um ou outro surge aqui e ali, mas permanecem em cena por pouco tempo e servindo de escada para o estado emocional momentâneo de Violeta.

O Abismo Prateado não é o melhor filme dirigido por Karim Aïnouz, mas é um trabalho que merece ser observado com atenção pela proposta minimalista que o envolve. Mesmo que para tanto seja necessário perdoar a trágica versão da música cantada por Thiago Martins, intencionalmente desafinada. Bom filme.