Críticas AdoroCinema
5,0
Obra-prima
O Irlandês

A máfia nua e crua

por Barbara Demerov

Diferente de Os Bons Companheiros, clássico de Martin Scorsese, O Irlandês adentra em uma abordagem mais específica do mundo da máfia, menos enérgica e mais carregada. Aqui, o foco recai mais na melancolia que certas escolhas podem trazer do que propriamente na brutalidade de quem vive no meio gângster. Melancólico, aliás, é um adjetivo que chega bem perto de definir este filme - se é que é possível defini-lo em apenas uma palavra. Scorsese já conheceu o topo de de seu jogo com Os Bons Companheiros e Casino, mas retorna, aos 76 anos, ainda mais maduro do que se pode imaginar ao estimular um universo já bastante familiar em sua filmografia com um novo impulso: o de isolamento causado por uma vida dedicada a outras vidas, estas incapazes de preencher buracos cavados por um sacrifício que veio do livre-arbítrio.

Frank Sheeran (Robert de Niro), conhecido como "O Irlandês", é quem toma as rédeas da narrativa, inicialmente dividida em três linhas temporais (duas delas se encontram posteriormente, formando uma só). Antes um motorista e veterano de guerra que transportava carnes, entrando no contato da máfia após ser acusado por vender parte de sua carga a um gângster e não entregar ninguém no tribunal, Frank conhece uma nova realidade quando o chefe da família criminosa da Pensilvânia, Russell Bufalino (Joe Pesci, excelente), o transforma em seu próprio hitman. Com o protagonista atuando em diferentes missões ao longo das décadas, O Irlandês segue perfeitamente a cartilha Scorsese, cujas características sempre se fazem presentes em seus dramas: a narração em primeira pessoa falada diretamente ao espectador, o humor peculiar dosado com a tensão explícita em diálogos, a direção que faz a câmera ir e vir, percorrendo lentamente cada ambiente para que o espectador capte os detalhes, e a vibração que o trio principal (formado por De Niro, Pesci e Al Pacino como Jimmy Hoffa) emana graças ao desenvolvimento minucioso do roteiro de Steven Zaillian.

As 3h30 de duração, novo recorde de Scorsese, não são apenas bem distribuídas pela montagem de Thelma Schoonmaker como ajudam a delinear cada etapa da jornada criminal e pessoal de Sheeran. É como se observássemos realmente uma vida inteira através das décadas, sem ser preciso um indicativo de qual ano os personagens estão. A entrada na máfia já como adulto (cujo CGI ajudou no rejuvenescimento de De Niro), o seguimento de caminhos condenáveis, a ausência como pai e marido, assim como o eventual declínio, formam a base de tudo, fazendo com que a inclusão de outras peças essenciais (como Bufalino e Hoffa, presidente do sindicato) seja natural e também a extensão do protagonista. Acompanhar tudo isso num tom que preza a crueza da profissão de Frank e não o fluxo de quem vive uma vida inconstante é acompanhar uma crescente de sensações difíceis de definir, pois é na jornada que se encontra o propósito de Scorsese enquanto contador de histórias. Somente próximo ao desfecho é que a narrativa toma uma dimensão íntima e pessoal, com o protagonista alcançando um fio de humanidade tão devastador quanto adequado à sua postura.

Mas até chegar a este fio, todos os lados da mesma história são bem equilibrados por Scorsese. Por mais que Joe Pesci e Al Pacino dividindo a cena com De Niro nos deem a chance de ver o mais alto nível em técnica, o diretor aproveita, também, a dose emocional contida no simples e raro fato de os três estarem juntos no mesmo filme. Diante de tamanho conforto e troca, é como se aqueles personagens já se conhecessem de outras realidades e épocas. Entre diálogos que vão de negócios a família, dores pessoais a dinheiro, a tensão é construída na mesma medida que a confiança nasce; e transitar entre estes dois contrastes é um processo pungente e realístico. Pela primeira vez, Scorsese mostra o outro lado da moeda do que realmente é ser um gângster sem a presença de uma trilha-sonora mais animada ou piadas na maior parte do tempo. Aqui, é a já citada melancolia que se faz sempre presente, inclusive na fotografia dominada por cores frias e nos olhares cansados do trio principal.

Apesar das breves, mas ótimas cenas em que são inseridos tiros, explosões e diálogos que antecedem medidas drásticas e violentas, O Irlandês alimenta este clima gângster com o silêncio - desde os momentos em que tarefas difíceis terão de ser feitas até chegar à família de Frank. Quando o personagem pergunta a uma de suas filhas o que ele pode fazer pela família após tantos anos de afastamento, o que ele recebe é o silêncio. Tal quietação é demonstrada pela procura de Frank por uma morte tranquila e segura, além de ser incorporada, também, pela personagem de Anna Paquin, filha e talvez a única mulher da vida de Frank que enxerga desde criança quem o pai e seus companheiros são de verdade. Apesar de ela possuir literalmente uma fala, sua presença diz muito - e é em seu silêncio que reside a porção intimista da história, o maior trunfo que Scorsese projeta diretamente no protagonista no último ato.

A verdade é que O Irlandês é muitos filmes em um só. É a condensação de uma vida que sobreviveu à guerra e, quando teve a chance de construir laços essenciais, os negligencia; assim como é um retrato cru e irreverente sobre amizade, promessas e a importância de dar a palavra a uma causa que não é apenas sua. É Martin Scorsese em total sintonia com a própria essência, o que resulta numa trama dominada por gângsters egocêntricos e gananciosos que, simultaneamente, são homens desprotegidos de si mesmos. O momento em que parte do elenco encontra a fragilidade é quando o diretor manifesta fragmentos da solidão e velhice em colisão com memórias do passado. Uma porta entreaberta se encaixa na metáfora de que, finalmente, é a hora de alguém entrar neste universo banhado de sangue e dor. Resta saber se alguém estará lá para abri-la por completo.