Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
Depois da Caçada

Em Depois da Caçada, Julia Roberts, Andrew Garfield e Ayo Edebiri ficam presos em um limbo do “moralmente cinza” agradavelmente emoldurado

por Júlia Barbosa

Buscar respostas objetivas em um debate sobre ética e filosofia é um equívoco, mas qualquer um que entra na conversa precisa ter um argumento forte o suficiente para sustentar a discussão. Em Depois da Caçada, Luca Guadagnino pisa na Ágora apenas com a promessa de um argumento, atiçando a controvérsia para sair por cima ironicamente.

Abro minha defesa afirmando que essa estratégia foi uma verdadeira armadilha que o diretor construiu para si e acaba caindo nela algumas vezes durante os 139 minutos do filme. Ainda assim, é inegável que Guadagnino reforça seu estilo-assinatura e se consagra como um dos maiores arquitetos de imagem do cinema contemporâneo.

Julia Roberts se afasta da heroína romântica e entrega protagonista imponente

O cenário escolhido é o ringue mais competitivo, hostil e esteticamente refinado possível: o instituto de Filosofia da Universidade de Yale. Retratada muitas vezes na mídia, costumamos ter o ponto de vista da vida universitária dos estudantes da Ivy League, mas aqui seguimos Alma Imhoff (Julia Roberts), uma professora de Ética que está lutando por uma cadeira fixa no departamento de pós-graduação.

Vemos logo de cara que sua presença transmite poder e confiança ao descrever o Panóptico de Foucault sem rodeios para turma repleta de jovens atentos, igualmente cativados e intimidados por sua figura. Fora da sala de aula, sem o blazer tão alinhado quanto sua postura, o mesmo fascínio amedrontado é sentido pelos personagens que a circundam (ou melhor, que estão aos seus pés).

Em casa, seu marido Frederik (Michael Stuhlbarg) dedica-se ao casamento com um afeto que ele sabe ser unilateral. Entre piadas e desabafos do bar, seu amigo e também professor Hank Gibson (Andrew Garfield) não tira os olhos famintos dela por um segundo sequer. Pelos arredores do campus, a jovem doutoranda Maggie (Ayo Edebiri) busca sua validação a qualquer custo.

Poucas pessoas vestiriam essa persona tão bem quanto Julia Roberts, que só de aparecer em qualquer tela já atrai todos os olhares, porém, desta vez, ela não exibe luminosidade e carisma. Explorando outra faceta de seu magnetismo, a Alma de Roberts é centrada e beira a frieza, deixando o sorrisão que lhe garantiu milhões de dólares reservado para os momentos de sarcasmo. Ainda assim, os conflitos internos que a personagem carrega são perceptíveis pelo olhar e pela corporeidade da atriz, em especial, quando se trata da imagem que ela projeta de si para os outros e a alteridade que estabelece em relação aos seus admiradores/rivais.

Mas, como já diz o ditado, “pesada é a cabeça que segura a coroa”, e ser o núcleo de gravidade dessas pessoas a transforma no centro de um drama pesado. Maggie lhe confessa que foi abusada sexualmente por Hank após um jantar no apartamento da professora e pede ajuda para defendê-la. A protagonista afirma que acredita no relato da aluna, mas a aconselha a não levar o caso a público para que a acusação não a prejudique no futuro.

Do outro lado da denúncia, Gibson concorda que passou dos limites, mas diz ser inocente de qualquer crime. Ele ainda insiste que a garota estaria mobilizando a denúncia porque identificou plágio na tese dela. Confrontada pelos dois lados, Alma precisa decidir como agir enquanto protege seus próprios segredos.

Depois da Caçada foge dos clichês, mas se perde ao não levar seus personagens a sério

A partir desse enredo, não é difícil cair no infame “a palavra de um contra a do outro” que muitas produções que abordam situações de abuso seguem. Afinal, como o próprio personagem de Garfield afirma “tudo o que dá para falar sobre isso já foi dito antes”, não é? O acerto do roteiro de Nora Garrett está em sair desse maniqueísmo e tomar uma via onde as motivações e os interesses de cada um são as peças postas em xeque. Não há investigação por uma verdade única, assim como na Filosofia. Tampouco há heróis: todos se sentem culpados e, realmente, são culpados de algo em alguma instância.

É interessante que o filme queira retratar como, na elite cultural, as consequências dos atos são quase nulas (um fato!), mas conforme os esqueletos no armário de cada um dos personagens vão sendo revelados aos poucos, não há reviravoltas ou impactos significativos. Isso acontece porque o longa se dedica demais ao “moralmente cinza” e fica preso nessa área turva.

Deixar o espectador sem respostas claras não seria um problema se o mecanismo eleito para gerar interpretações diferentes não fosse criar múltiplos pontos de tensão que não se resolvem e tampouco explodem. Um exemplo disso é a aparição recorrente de uma doença misteriosa que faz com que Alma passe mal, algo que vai despertando interrogações, mas deságua somente no contexto em que uma cena do final acontece.

As discussões éticas costuram o filme, seja no plano teórico das aulas conduzidas por Imhoff ou nas brigas no meio do corredor. Como recurso, o diálogo lança mão de citações esporádicas e vocabulário rebuscado como uma forma de mostrar que essas pessoas se escondem atrás do academicismo e desejam ser vistas como parte da “nata intelectual”. Entretanto, fazer uma caricatura dessa elite ao invés de uma representação dela denota que a autora (e tampouco o público, por conseguinte) não deve levar esses personagens a sério.

O roteiro quer à todo custo que o espectador questione o retrato de Maggie — uma mulher jovem, preta e queer cujo parceire é uma pessoa não-binária — como a “vítima perfeita”. Mas, do lado de cá da tela, parece que teceram uma forma para sustentar o argumento de Hank, o qual acredita ser o verdadeiro injustiçado da história por precisar defender sua posição no corpo docente e lutar pelo pão de cada dia, enquanto a aluna que o acusa é a herdeira de uma grande fortuna que lhe permite poupar esforços e viver no conforto da mediocridade.

Atuações potentes e o cinema "à la Guadagnino" sustentam filme

Os personagens de Depois da Caçada são bons o suficiente para se sustentarem sem artifícios apelativos, ainda mais com um elenco da maior qualidade. Os atores realçam as nuances de cada cena e, por serem extremamente talentosos, extraem o melhor de seus parceiros de cena para manter um rally emocionalmente carregado. O trio principal é assustadoramente sedutor. Ayo, Andrew e Julia trabalham bem a já clássica dinâmica cunhada por Guadagnino de tensão sensual, hierarquia e emoções reprimidas.

Faço questão de salientar o trabalho de Michael Stuhlbarg, que já brilhou sob a batuta do diretor italiano em Me Chame Pelo Seu Nome (2018), e cria o contraponto perfeito não só para Alma, mas para Hank e Maggie também. Retratado com um psiquiatra excêntrico — e admirador de Caetano Veloso e João Gilberto, aparentemente —, acho que Frederik é a única figura realmente autêntica e sem medo de demonstrar afeto e suas opiniões, independente do que os demais pensam.

Stuhlbarg sabe muito bem disso e colore as cenas com um tempero necessário de energia e especificidade. Chlöe Sevigny também entrega uma ótima e bem dosada performance com a psiquiatra Kim Sayers, amiga de Alma.

A atenção aos detalhes é algo que o coadjuvante e o diretor compartilham, claramente. Com exceção da roteirista, infelizmente, Luca Guadagnino sabe como montar uma equipe criativa para atender a sofisticação de seus projetos. A trilha sonora dos geniais Trent Reznor e Atticus Ross agrega um toque de melodrama que me lembrou do piano onipresente de May December (2023), mas de uma maneira muito mais certeira e refinada do que no filme de Todd Haynes.

Repetindo a parceria de Queer (2024), o estilista Jonathan Anderson, atual diretor criativo da Dior, assina o figurino digno de um catálogo da grife. Pode até parecer que todos se vestem com paletas de cores e silhuetas complementares, criando uma homogeneidade comercial, mas é o ideal para retratar a bolha em que os personagens estão inseridos.

A atmosfera criada por Guadagnino e as atuações impecáveis dão sabor à experiência de sentar no cinema e digerir a história de After the Hunt. Porém, ainda que o cineasta defenda que fez o filme com o objetivo de estimular o debate de temáticas controversas, ele não é provocativo o suficiente para ser problemático e nem ousado, caindo na própria mediocridade que critica.

*O AdoroCinema assistiu ao filme no Festival do Rio 2025.