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    António Um Dois Três: Diretor e ator falam sobre a comédia de deslocamentos entre Brasil e Portugal (Exclusivo)

    Bate-papo com Mauro Soares e o cineasta Leonardo Mouramateus.

    Depois de ser exibido nos festivais de Roterdã e Brasília, chega aos cinemas brasileiros António Um Dois Três, coprodução entre Brasil e Portugal. O projeto representa a primeira experiência na direção de longas-metragens para Leonardo Mouramateus, experiente curta-metragista cearense radicado em Portugal.

    Ele registra parte de sua experiência pessoal com a história de António (Mauro Soares), jovem que foge da casa da família, em Lisboa, quando seu pai descobre que o filho abandonou a faculdade. Sem ter onde ficar, retoma contato com a ex-namorada (Mariana Dias) e conhece a nova locatária do apartamento, a brasileira Débora (Deborah Viegas). Enquanto isso, mergulha no mundo do teatro independente da capital portuguesa.

    O filme impressiona por contar diferentes versões da mesma história, modificando as relações de António com os personagens ao redor. O resultado é uma somatória de experiências, ao mesmo tempo leve e ambiciosa. O AdoroCinema conversou com Mouramateus e Soares sobre o projeto, que já está em cartaz nos cinemas:

    Como vocês descreveriam o Antônio - ou os Antônios?

    Mauro Soares: Não acredito que existam vários Antónios, existe mais de um arco dentro da história do António. Todos eles avançam, a gente percebe quando a história dá um pulinho e as coisas mudam. As pessoas às vezes não se lembram, mas o António, mais do que os outros, tem um fio condutor. Quando o primeiro salto ocorre, nós sabemos que ele não tinha mais a mesma problemática da primeira vez em que a gente encontrou o António.

    Ele é um jovem adulto preso entre dois mundos, o que é um lugar ótimo para estar. Ele está entre esse mundo jovem ainda muito vibrante e um mundo adulto do tipo: “Agora você tem que lidar com as suas responsabilidades, não tem como fugir nem dizer que é problema dos outros”. Mas eu nunca faço muita psicologia do personagem, eu sempre penso muito mais nas ações, porque são elas que definem o personagem.

    Então você não constrói uma história pregressa?

    Mauro Soares: A gente só conhece o personagem por aquilo que vemos, então é muito mais importante o jeito como ele pega em um copo do que pensar: “O que aconteceu com ele quando tinha quatro anos”? Eu não penso muito em psicologia. Para o António, em especial, a gente filmou as três partes separadas, com seis meses de diferença entre cada. A primeira foi mais peculiar, porque foi quando mais definimos o personagem, por assim dizer. O processo era muito baseado em ações, coisas que a gente queria ver ele fazendo, uma certa ideia dentro dos personagens de humor físico com que estamos habituados: Charles Chaplin, Buster Keaton... Definimos que seria interessante ver o António indo ao supermercado, fazendo mímica, por exemplo.

    Leonardo Mouramateus: Tudo o que a gente vê no filme é mais ou menos a experiência que ele estava sentindo em cada uma das dimensões temporais e sentimentais. O filme valoriza o estranhamento de você não entender perfeitamente quem esse António é. A carga de identificação ocorre com os comportamentos dele, porque todo mundo já teve o coração quebrado ou passou por um conflito parecido na minha família. Na verdade, o António é três porque conforme a gente amadurece, a gente precisa se dividir em mais. Sou firmemente contra a ideia de que nos transformamos numa pessoa só. 

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    É curioso que estes jovens vivam apenas no tempo presente. Nenhum deles tem ambições para o futuro.

    Leonardo Mouramateus: É muito importante para mim, quando eu faço um filme, que a gente consiga envelhecer com aquilo que está se passando, que aquela experiência não seja apenas de esvaziamento ou alienação. Me interessa viver com os personagens e não para eles ou observar um fragmento da vida deles. Eu não sei exatamente como uma mise en scène dessa é possível, só sei que experimentando a noção de estar no presente, a gente filma as coisas da maneira mais reta, sem psicologizar. Por que todas as nossas decisões teriam a ver com o passado, ou por que faríamos toda ação para almejar alguma coisa no futuro? Basta estar presente que o suspense, o amor, o sentimento, a violência, tudo isso se instaura.

    Mauro Soares: Até porque a gente não psicologiza antes de fazer, a psicologia aparece para tentar explicar aquilo que a gente teve que fazer e fez. Conforme os conceitos vão evoluindo, se diz: “Isso está fora dos padrões”, então já tem que inventar uma nova maneira de escrever aquilo, ao invés de uma linha psicológica que nos guia.

    Leonardo Mouramateus: Temos que pensar em um filme desses no contexto de hoje, neste país e este mundo em crise. O filme tem um tom de humor, mas lida o tempo todo com crises de identidade, de deslocamento, de amor, de dinheiro. Tem essa coisa de estar acostumado a ser muito momentâneo: se você realmente está vivo, você tem que estar atento, as portas e os caminhos existem. Eu não acho que a relação desta nova geração com o imediato seja boa nem má em si.

    Para vocês, qual é o significado de trazer tantas versões para a mesma história?

    Leonardo Mouramateus: Eu coloco essas coisas no argumento de maneira muito pessoal, como alguém que interpreta a própria vida a partir desse parâmetro. Sem dúvida, quando eu me relaciono com a obra de arte, quando assisto como cinéfilo, vendo teatro, trabalhando com espetáculo de dança, tudo é matéria de criação. Na verdade, o António é criador desde sempre. A vida é completamente absurda, ela é só uma maneira mais formal, organizada de pôr sentido em coisas ou de revelar a falta de sentido dessas coisas. Essa realidade que corta os três universos é completamente subjetiva: ela está na TV, no VHS, no livro, no teatro... Tudo isso faz parte do universo das impressões. Esse lugar poético é na verdade o único lugar real do filme.

    Mauro Soares: Eu acho muito bom que a gente assista ao filme consciente de que se trata de um filme - considero este efeito muito bom. Do ponto de vista do ator, foi incrível porque esta foi a primeira vez que eu trabalhei com cinema. Eu pude dançar, pude cantar, pude ler poemas, fazer teatro. Eu já fazia teatro desde 2009 e é muito bom poder se jogar. Enquanto ator, gosto muito desse tipo de ações, apesar de ser muito fascinado também pelo diálogo.

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    De que maneira as culturas brasileira e portuguesa se confrontam (ou se complementam) no filme?

    Leonardo Mouramateus: A principal questão do filme é a distância, a ligação causada pela língua. A maior relação se dá através da palavra, porque ela constitui o elo entre essas duas pessoas que não se conhecem, como o António e a Débora. No primeiro encontro, pensamos: “Ok, a gente fala a mesma língua”, mas logo depois percebemos que nem sempre usamos as mesmas palavras. Você entende rapidamente que a vida do Johnny, um brasileiro que tenta a vida em Portugal, não vai ser tão diferente assim. Do mesmo modo, não é porque o António vai sair de casa que a namorada dele vai voltar para ele. Os deslocamentos externos são um tanto superficiais, enquanto os deslocamentos internos são muito mais difíceis de fazer.

    Mauro Soares: O projeto também não pretendia trazer um discurso direto sobre essas questões, apesar de elas estarem presentes. Além disso, seria impossível fazer um filme em Lisboa hoje em dia sem incluir a questão da imigração, porque muito brasileiros estão se mudando para lá. Esta é uma relação viva e a gente mostra essa relação, mais do que articular um discurso sobre Portugal-Brasil. 

    Leonardo Mouramateus: Todas as situações que aparecem no filme são coisas que realmente aparecem na vida. Mesmo assim, nesse filme não caberia abordar a xenofobia ou outras coisas que eu já vivenciei. As relações de deslocamentos são muitas coisas que eu já vivi. 

    Pode-se falar em um olhar estrangeiro, por ser um brasileiro fazendo um filme português em Lisboa?

    Mauro Soares: Não, é mais louco do que isso. Em Portugal, esse filme é demasiado brasileiro. No Brasil, ele é demasiado português…

    Leonardo Mouramateus: Isso acontece com qualquer imigrante, em qualquer país. O imigrante sempre fica perdido entre dois mundos.

    Mauro Soares: Esta é exatamente a sensação do filme, sobre esse outro lugar, essa migração. Enfim, é um diretor brasileiro fazendo filme com uma equipe brasileira e portuguesa, com um personagem português. Esta brecha não constitui apenas uma temática: ela é o próprio filme. Em outras cinematografias essas coisas são mais bem resolvidas, mas na brasileira e na portuguesa, nem sempre é o caso. Essas relações tendem a ficar cada vez mais fortes, a aparecerem de maneira mais gritante a partir de agora.

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