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    Tirando o Mofo: Por que A Felicidade Não Se Compra é o filme de Natal perfeito

    O clássico dos clássicos natalinos.

    Após ter pulado mais do que uma quinzena, a coluna Tirando o Mofo está de volta e com uma boa razão para o mini-hiato entre a edição de hoje e a última, "protagonizada" pelo Príncipe dos Ladrões em pessoa em As Aventuras de Robin Hood: o dia de Natal. E para marcar uma das datas mais importantes do calendário ocidental, não poderíamos escolher outro longa senão aquele que é reconhecidamente o filme natalino fundamental: A Felicidade Não Se Compra. Mas por que um título de mais de 70 anos de idade segue na ponta da tabela quando pensamos em cinema e no dia 25 de dezembro ao mesmo tempo?

    It's a Wonderful Life (título original) incorpora à perfeição em suas imagens e em sua narrativa a ideia do espírito do feriado, um conceito que vai muito além das origens religiosas do Natal. Como nota a antropóloga Krystal D'Costa em seu ensaio sobre a alma do feriado, o vigésimo quinto dia do último mês do ano é centrado ao redor de alguns comportamentos básicos que promovem a união e a fratenidade, tais como a generosidade, a bondade, a caridade e a capacidade de perdoar — elementos cada vez mais distantes da contemporânea vida urbana e que estão todos presentes nas bases de George Bailey.

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    Vivido pelo icônico James Stewart, um dos maiores atores hollywoodianos de todos os tempos, o protagonista de A Felicidade Não Se Compra é um homem carismático, cordial e de feitos incríveis, amado por praticamente toda a cidade de Bedford Falls — a não ser pelo ganancioso banqueiro e magnata Henry Potter (Lionel Barrymore), é claro. Entretanto, por uma série de infortúnios, desventuras e uma dose do pior tipo de acaso, Bailey começa a contemplar a possibilidade de acabar com sua vida... algo que o desajeitado anjo sem asas Clarence (Henry Travers) deve impedir a qualquer custo.

    No estilo do magnífico "Um Conto de Natal" (ed. L&PM Pocket), de Charles Dickens, os roteiristas Frances GoodrichAlbert Hackett e o diretor Frank Capra decidem retirar Bailey do fluxo cotidiano e de sua realidade para construir o emocionante emocionante, devastador e pungente terceiro ato do longa, em que Clarence demonstra como a vida seria se George jamais tivesse nascido. Genial e icônica, a sequência encapsula algumas das mensagens mais importantes do coração da trama de A Felicidade Não Se Compra: o que você deseja pode te destruir, mas o que você necessita pode te salvar.

    Desde jovem, George queria ser um aventureiro, um explorador, deixar a cidade de Bedford Falls para trás e conhecer o mundo. Contudo, ele perde sua audição quando criança; depois precisa cuidar dos negócios do pai; e acaba fincando ainda mais raízes ao se casar com Mary (Donna Reed). A série de acontecimentos e fatos, que só afasta o personagem de seus objetivos e sonhos infantis, gera um descontentamento, que paira como uma sombra sobre o protagonista, e daí decorre sua depressão: a obsessão por deixar uma marca no mundo, fazer algo relevante, destrói o espírito de George.

    Não é à toa, aliás, que A Felicidade Não Se Compra seja o primeiro longa-metragem realizado por Capra após seu retorno da Segunda Guerra Mundial, conflito bélico brevemente introduzido no filme. Enviado pelo governo dos Estados Unidos à Europa para filmar documentários de propaganda destinados a elevar a moral das tropas e a influenciar a opinião pública contra os nazistas, o lendário cineasta voltou para casa — ver a série documental Five Came Back, da Netflix, para maiores informações sobre esta história — atormentado pelos horrores da guerra.

    Assim, para um longa associado ao feriado mais feliz do ano, este filme certamente é mais sombrio do que se pode esperar em relação às tramas natalinas justamente por também ser um estudo avant la lettre no cinema de massas sobre a depressão e as doenças psicológicas. A frustração por não ter seguido seus desejos, a quase inveja de ver seus amigos tendo sucesso, a culpa que decorre imeditamente deste último sentimento e o desespero de correr e correr em busca de fins e conquistas que não dizem respeito à trajetória de George: tudo isso o leva à queda, brilhantemente interpretada por Stewart.

    Cena após cena do sofisticado roteiro, que apresenta a jornada do protagonista vista pelos olhos dos anjos e encadeia acontecimentos como na vida em si, George não consegue perceber que já havia alcançado tudo o que queria. Ir à Venezuela ou conhecer à Itália seriam conquistas interessantes, mas nenhuma delas poderia se comparar ao fato de que o personagem de Stewart não só enfrenta Potter, no clássico embate capitalista entre povo e poderosos, como também cria moradias populares para os menos abastados: ele modifica a vida de todos que cruzam o seu caminho — ele deixa, portanto, a sua marca em seu mundo.

    Em outras palavras, é como se o Fantasma do Natal Presente, um dos três espectros que visitam o avarento Ebenezer Scrooge na clássica narrativa curta de Dickens, também estivesse, de certo modo, em A Felicidade Não Se Compra. Como escreve D'Costa em seu supracitado artigo, "O propósito do Fantasma do Natal Presente é levar Scrooge para um passeio ao redor da cidade e mostrar que tanto os ricos quanto os pobres buscam conforto na companhia encontrada no Natal. Isto é, as pessoas estão investidas em compartilhar e na gratidão pelo que elas têm".

    A Felicidade Não Se Compra é, portanto, o melhor filme natalino de todos os tempos, o clássico dos clássicos deste feriado, porque traduz a movimentação convergente que é tão própria do dia 25 de dezembro e de sua véspera, marcada pela harmonia entre famílias, amigos e entes queridos. A resposta, no fim das contas, está naquela luz acesa nas casas como um farol no meio da escuridão, nos pisca-piscas nas janelas, no calor noturno, nos pratos e nos doces e até mesmo nas piadas sem graça daquele seu tio e nas perguntas incovenientes da sua tia.

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    A chave — como demonstra a potente cena final de A Felicidade Não Se Compra, uma das mais comoventes sequências de encerramento da história da sétima arte — talvez seja replicar e estender estes comportamentos incentivados pelo espírito natalino para o restante dos outros 11 meses do ano. E, para finalizar, como diz D'Costa: "O código de generosidade, bondade e caridade em relação aos outros é reforçado por ninguém mais, ninguém menos que nós mesmos". E se não foi assim em 2018, que seja assim, do jeito que for possível, no ano que vem. Nos vemos em 2019.

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