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    Mostra de Tiradentes 2017: Entre o cinema sensorial e o discurso anticapitalista

    Lamparina da Aurora, de Frederico Machado, e Sem Raiz, de Renan Rovida, foram exibidos na 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes na noite de quarta-feira (25).

    A noite de quarta-feira (25) contou com sessões de longas das duas principais mostras competitivas da 20ª Mostra de Tiradentes dedicadas ao formato.

    O filme de mistério quase experimental Lamparina da Aurora, de Frederico Machado, foi exibido na Mostra Olhos Livres e se firmou como o trabalho mais esfíngico apresentado até então nesta edição do festival. Já na Mostra Aurora, o destaque foi a exibição do drama Sem Raiz, de Renan Rovida, que conversa com as questões de representatividade feminina e com as temáticas sociais presentes em muitos dos filmes de Tiradentes.

    Medo e delírio

    Os limiares entre sonho e pesadelo, miragem e realidade, vida e morte, dor e prazer se dissolvem no longa-metragem Lamparina da Aurora, exercício de radical autoralidade do cineasta maranhense Frederico Machado. A obra serve como homenagem póstuma ao poeta Nauro Machado (1935 - 2015), pai do diretor, e completa a trilogia temática formada pelos filmes O Exercício do Caos (2013) e O Signo das Tetas (2015).

    O mais hermético dos longas de Tiradentes até aqui encontrou a resistência de muitos espectadores, que abandonaram a sessão antes do término do filme. Tal atitude não é difícil de explicar, afinal o filme faz pouquíssimas concessões ao público.

    Divulgação

    Com apenas três atores, quase nenhum diálogo e uma atmosfera densamente aflitiva, a narrativa de Lamparina da Aurora é esparsa e cheia de eclipses. Um homem (Buda Lira) visivelmente atormentado encara os dias com uma postura sonâmbula. Ele divide seus dias numa casa em uma fazenda isolada habitada por ele e sua esposa (Vera Leite). Os dois fazem refeições juntos, mas o espectro da incomunicabilidade os ronda. Quando a mulher sugere aproximação sexual, abre-se no teto uma goteira de sangue. O som do ponteiro do relógio e o badalar dos sinos são sentidos por eles como espinhos que rasgam suas carnes. A rotina dos dois é interrompida pela chegada de um homem misterioso (Antonio Saboia). Este homem, de modos ora doces, ora diabólicos, aparenta ser filho do casal, mas esta informação não é cedida ao espectador.

    Assim como em O Exercício do Caos e O Signo das Tetas, Machado preocupa-se mais com as dilatações do tempo do que em amarrar uma história com início, meio e fim. A fragilidade masculina, a religiosidade, a sexualidade visceral, a busca existencialista explorada através do contato com a natureza são temas constantes da carreira do diretor e retornam aqui mais fortes do que nunca, amparados por simbologias visuais e sensoriais (a trilha sonora, que chega a subverter Erik Satie, é uma personagem a parte). 

    Há em Lamparina da Aurora um breve flerte com as linguagens do cinema de terror, mas o longa-metragem de Frederico Machado se estabelece num território próprio, para bem e para o mal. Muitas imagens são potentes (o longa tem a melhor fotografia dentre todos os realizados por Machado), mas em alguns momentos o filme oculta até demais as chaves para sua compreensão por parte do público.

    Vamos à luta

    Com uma estética documental, muitas cenas rodadas pelas ruas (a presença da câmera chega a ser notada e comentada) e a apresentação de dramas "desdramatizados", Sem Raiz carrega paridades com traços do cinema neorrealista, fazendo uma ponte com a realidade de um Brasil marcado por uma crise econômica que parece não ter fim, desemprego e descalabros políticos.

    Apresentado pelo diretor Renan Rovida como um filme anticapitalista, o longa-metragem se divide em segmentos — Sem Emprego, Sem Lucro, Sem Propriedade, Sem Comunidade — para mostrar histórias de mulheres que tentam sobreviver em meio às dificuldades de um mercado de trabalho hostil aos sonhos delas.

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    "Patroa, patrão... filho da puta", diz Esperança (Maria Tereza Urias), que foi demitida injustamente e tenta planejar uma forma de pagar enquanto vende pelas ruas flores que apenas outras mulheres compram. Enquanto isso, Débora (Deborah Hathner), cuja tia a ensina a "não se amarrar a dinheiro", trabalha como atendente de telemarketing num horário ingrato, ficando suscetível a situações de risco no trajeto de volta para casa. Ruth (Ruth Melchior) é uma corretora de imóveis que há tempos não fecha um negócio e se divide entre a faculdade, o filho e o namorado um tanto insensível. Juana (Laura Brauer) é acusada de desperdiçar sua vida acadêmica por conta de seus posicionamentos políticos.

    Em paralelo aos dramas vividos por essas mulheres no contexto urbano, Carlota (Carlota Joaquina) trabalha com agricultura. A presença dela no filme serve como contraponto, mostrando as possibilidades de uma vida no campo.

    O diretor Renan Rovida filma as personagens com bastante respeito e dedica a suas personagens um olhar humanista, mas Sem Raiz tem alguns problemas de ritmo, com sequências que se arrastam demais e outras que são muito curtas, como as dedicadas à Carlota. O filme também sofre de um mal comum a projetos episódicos: Alguns segmentos se destacam muito mais que os outros em densidade.

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