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    Exclusivo: "Os homens frágeis são heróis à sua maneira", explica Arauco Hernández, diretor de Os Inimigos da Dor

    No drama, três solitários se unem em Montevidéu.

    Chega aos cinemas nesta quinta-feira uma rara produção uruguaia exibida em telas brasileiras: Os Inimigos da Dor, primeira experiência na direção para Arauco Hernández, mais conhecido como diretor de fotografia dos premiados Gigante e A Vida Útil.

    Neste longa-metragem, ele aborda o encontro entre três homens solitários em Montevidéu. O trio se une para ajudar um homem alemão que busca se reconciliar com a esposa uruguaia. Nós conservamos em exclusividade com o diretor, que falou sobre o longo caminho do projeto e explicou suas curiosas escolhas de trilha sonora, elenco e fotografia:

    Como nasceu a história de Os Inimigos da Dor?

    Arauco Hernández: A história nasceu, na verdade, como uma anedota. Eu vivia em Nova York. Minha irmã e o marido dela, que é o protagonista do filme, vinham me visitar em casa e nós três éramos estudantes naquela época. Não tínhamos dinheiro algum e, como eles são dançarinos de dança contemporânea, tentaram me convencer a dançar também, para trabalharmos juntos. Eu disse que poderia ser através do cinema. Então, continuei com essa fantasia e comecei a escrever algo muito diferente do que acabou sendo o resultado final.

    Escrevi com eles em mente: a minha é irmã é mexicana e uruguaia e ele é alemão, então a história seria sobre um casal de estrangeiros que se conhece em um país e tenta superar a distância e os problemas trazidos pela diferença de nacionalidades. Esta história foi mudando muito no decorrer de quase oito anos e acabou se tornando algo irreconhecível em relação ao início. Incrivelmente, o resultado final acabou muito parecido com a ideia que eu tive anos antes em Nova York, sobre um forasteiro que chegava à cidade. 

    De alguma forma, um projeto acabou se fundindo no outro e a história voltou a me interessar, de modo narrativo, de uma maneira que eu pudesse explorar a linguagem cinematográfica. No momento em que eu estava preparando o filme, estava muito influenciado por um livro de Roberto Bolaños, "Selvagens". O que mais me fascina neste livro é o fato de que Bolaños brinca com a mudança de gêneros literários, o livro começa de uma forma e termina sendo outra coisa. Essa ideia me influenciou bastante e o filme acaba partindo dela, termina abraçando essa ideia de começar como algo para transformar-se em outra coisa, uma viagem imprevisível.

    Este universo é quase inteiramente masculino, mas formado por homens muito frágeis. Existe uma desconstrução da masculinidade.

    Sim, a ideia era tratar essa fragilidade. Os heróis, os fortes, os autoritários não me interessam, não me interessa essa concepção reacionária do heroísmo. Me identifico muito mais com os homens frágeis, que são, de alguma forma, heróis à sua própria maneira. Isso porque toda a ideia de heroísmo é um pouco absurda. Eu queria falar sobre homens frágeis porque esse lado da masculinidade é sempre muito solapado, muito escondido, muito representado como algo antimasculino, o que é uma mentira porque essa fragilidade faz parte do homem.

    Você tem bastante experiência como diretor de fotografia e agora também dirige. O longa tem um trabalho particular de fotografia, com luzes muito escuras. Como foi a sua concepção da imagem?

    Foi um trabalho conjunto com Thomas Mauch. O mais incrível é que nunca paramos para conversar especificamente sobre a luz ou sobre os enquadramentos. Thomas chegou uma semana antes de começarmos a produção e sentamos juntos em um apartamento durante três dias para conversar sobre a história, sobre o roteiro. Não falamos sobre a fotografia.

    Então, o processo com Thomas foi algo muito simbiótico porque, de alguma forma, imaginávamos ou sonhávamos com essa escuridão para o filme. Na maior parte das vezes, ao invés de acendermos as luzes, foi mais um trabalho de deixar a maioria delas apagadas o máximo possível. O próprio roteiro sugeria algo com essa densidade e acho que foi isso que Thomas percebeu e se dedicou a materializar. Este não podia ser um filme iluminado, precisava ser um longa escuro porque, para mim, o filme é basicamente uma queda em direção ao inferno. É como partir de um lugar inocente e cair até chegar a um lugar muito mais escuro.

    No filme, Montevidéu aparece completamente vazia, ameaçadora. É um clima opressor.

    Sim. Eu decidi que o filme não podia se passar no presente porque a ideia deste tipo de falta de comunicação é uma coisa muito própria do passado. Hoje em dia, a protagonista não poderia desaparecer da vida do personagem como desaparece no filme, um sumiço que o força a voltar ao Uruguai buscando por ela. Isso seria praticamente impossível no mundo de hoje, totalmente integrado. Decidi isso quando me dei conta que estava escrevendo este filme motivado pela melancolia. É um longa muito melancólico em vários níveis diferentes.

    É, também, melancólico em relação ao cinema, típico dos anos 80, uma fascinação inocente pela época na qual existia uma certa liberdade que o cinema contemporâneo vem perdendo. Quando decidi que o longa não podia se passar na atualidade, percebi que seria natural que se passasse no fim dos anos 80, porque eu gostava da ideia de que o protagonista havia conseguido escapar da Alemanha logo depois da queda do Muro.

    Ao mesmo tempo, a Montevidéu dos anos 80 era o símbolo de um Uruguai que estava saindo de uma ditadura, um país que também havia sido golpeado de certa forma. Então, cheguei à conclusão de que para o personagem, Montevidéu seria como uma Berlim do leste. O protagonista se tornou então um personagem que cruza o mundo para chegar ao mesmo lugar, cruzando um espelho, de certa forma, para enfrentar tudo que ele acreditava ter deixado para trás.

    A trilha sonora é interessante: em cenários tão melancólicos, é raro usar música eletrônica e dissonante.

    A trilha sonora nasceu de uma pergunta que fiz a mim mesmo: como este alemão contaria sua própria história se fosse o diretor do filme? Imaginei que ele chegaria influenciado pela música alemã e a escolheria, porque a música que escolhemos é também uma maneira de traduzir nossas emoções. Ele traduziria suas emoções através da música alemã eletrônica, provavelmente dos anos 70, a música que escutou durante sua adolescência.

    Logo, me veio Kraftwerk à mente. Seria muito interessante essa condição de um alemão no Uruguai que traz a música eletrônica e pensei que isso seria uma nova maneira de observar o Uruguai, uma forma que distancia o espectador local de seu próprio território. A ideia, para mim, sempre foi que o espectador pudesse observar aquele mundo com a mesma estranheza que observava o personagem principal.

    Comecei a estudar este gênero e trilhas sonoras de filmes como Blade Runner, a música dos anos 80. Após ter feito o filme, percebi que criamos a trilha do filme de maneira semelhante aos filmes que me emocionaram quando era adolescente. Na época que eu conheci o cinema, era assim que ouvíamos as trilhas sonoras.

    Você falou um pouco da escolha do seu ator principal, mas como escolheu os dois outros? Trabalhou com referências específicas com seu elenco?

    Além de Felix Marchand, o alemão, o outro ator que eu já tinha em mente era Pedro Dalton, músico integrante de uma das bandas uruguaias de que mais gosto. Eu o conheci fazendo a fotografia de um videoclipe da sua banda, Los Buenos Muchachos. Ele é uma pessoa revestida pela aparência de um homem muito duro, mas no fundo é uma pessoa muito sensível, quase como um anjo. Escrevi o filme pensando nesse personagem, escrevi com ele em mente.

    Lucio Hernández, que interpreta o outro integrante do trio, é o único ator que conheci de maneira convencional, através de um teste de elenco. Então, tive que trabalhar com cada um deles de um modo particular porque Felix vem da dança contemporânea, Pedro é um performer, mas vem da música e Lucio é um ator clássico. Tive que estabelecer uma linguagem diferente para cada um deles.

    Não ensaiamos muito porque eu queria que a novidade do encontro se mantivesse. Se eu tivesse ensaiado muito, provavelmente eles iam acabar se acostumando pouco a pouco com a minha presença, com a presença da câmera e da produção. Eu queria pegá-los de surpresa ou que o filme, de certa forma, os pegasse de surpresa, como os personagens são pegos de surpresa. Então, preferi reduzir os ensaios ao mínimo.

    Assim você teria um efeito mais natural.

    E também para que fosse um processo de descoberta para todos. Como eu já fotografei muitos filmes e para mim filmar jé um evento normal, eu queria que este projeto fosse um pouco como "a primeira vez", passando a sensação de um primeiro filme.

    É uma ideia contrária a que as pessoas normalmente têm quando desejam fazer um filme perfeito, o mais profissional possível. Eu não queria isso. Queria que tivesse a inocência do primeiro filme, correndo o risco das decisões absurdas de uma primeira vez no cinema. Até porque este longa foi uma experiência diferente, pelo menos para mim, porque queria viver uma experiência imprevisível. Foi por isso que eu escolhi Thomas, um fotógrafo de 76 anos, para fazer a fotografia com seu universo cinematográfico particular, que é muito diferente do meu universo.

    De certa forma, era esse confronto que eu queria para o espírito do filme. O objetivo era fazer um longa arriscado em todos os sentidos, ou seja, caminhar em outra direção, realizar o experimento de escolher uma direção oposta àquela que as pessoas normalmente seguem e ver o que acontece a partir daí.

     

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