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    Exclusivo: Oja Kodar revela segredos de Orson Welles em Mostra do centenário do diretor

    Rio de Janeiro e São Paulo recebem a Mostra Centenário Orson Welles a partir do dia 13 de maio.

    Gianne Carvalho / Divulgação

    Talvez você ainda não conheça Oja Kodar, mas a croata de 74 anos tem uma trajetória intimamente ligada ao cinema. Atriz, produtora, escultora e roteirista, ela também foi parceira profissional e amorosa de Orson Welles durante os últimos 25 anos do cineasta.

    Detentora dos direitos das obras de Welles, ela veio ao Brasil para apresentar a Mostra Centenário Orson Welles, em relação ao aniversário que o cineasta teria completado em 2015. A mostra, organizada pelo circuito NET de cinema, acontece no Rio de Janeiro (no Estação NET Botafogo) entre os dias 13 e 20 de maio, e em São Paulo (no Caixa Belas Artes) entre os dias 22 e 27 de maio. Serão apresentadas cópias novas de grandes clássicos do diretor: Cidadão Kane, O Estranho, A Dama de Shanghai, Macbeth: Reinado de Sangue, Grilhões do Passado, A Marca da Maldade e Verdades e Mentiras.

    Em entrevista exclusiva ao AdoroCinema, Kodar conversou sem pudores sobre as controversas obras inacabadas de Welles, compartilhando histórias inesperadas e divertidas sobre o grande cineasta:

    A sua carreira no cinema está diretamente associada à de Orson Welles. Mesmo o seu nome artístico foi escolhido por ele.

    É verdade. Meu nome verdadeiro é Palinkaš, que era difícil para os estrangeiros pronunciarem. Orson sempre disse que eu precisaria trocar isso mais cedo ou mais tarde. Um dia, um amigo croata veio me visitar, e eu fazia a tradução do que o Orson dizia ao croata. Ele disse: “Para mim, ela é como um presente de Deus”, então eu traduzi para o croata, que fica “kao dar”, ou seja, “como um presente”. Orson gostou do som da palavra, e disse que eu deveria adotar “Kodar” como nome.

    Você conheceu Orson Welles graças à carreira de atriz?

    Não exatamente. Quando a gente se encontrou, eu estava me inscrevendo na escola de Belas Artes. Eu trabalhei como atriz em quatro filmes da Iugoslávia, na época, e nunca tive a ambição de me tornar atriz profissional. Mas eu era uma garota atraente, e o dinheiro viria rápido, então eu disse “Por que não?”. Quando me formei, pensei que não teria futuro como atriz, não queria ficar esperando o telefone tocar à espera de propostas. Preferi ser artista visual, trabalhar com as minhas mãos, então me dediquei à escultura.

    Orson Welles teve diversos projetos nunca concluídos...

    Esse é um tema doloroso para mim. As pessoas sempre acusaram o Orson de começar algo, mas não terminar, como se ele fosse um gênio com medo de concluir seus filmes. Isso é ridículo! Ele não terminava os filmes por falta de dinheiro. O primeiro filme que comecei com ele era chamado The Reckoning, depois mudamos para The Deep, e depois alteramos de novo, porque outra pessoa fez um filme com esse nome... Enfim, ele me chamou para atuar nesta história, e o triste é saber que ele terminou as filmagens! Faltavam apenas imagens da segunda unidade, algumas tomadas subaquáticas... Ele também precisava que Jeanne Moreau dublasse algumas cenas.

    Antes, eu não falava sobre isso, mas hoje eu tenho 74 anos de idade, e não me importo se vou ferir os sentimentos de alguém ou não. Nós fingimos na época que o filme não podia ser concluído por causa da morte de Laurence Harvey, mas isso não é verdade. Não pudemos terminar porque Jeanne Moreau se recusou a participar da dublagem. Eu falo isso sem medo da repercussão, sem medo de ser processada, porque tenho cartas de Orson e dos advogados de Orson, provando que a culpada é Moreau. Eu era uma garota muito bonita, e na época em que ela foi contratada para o filme, ela já era uma mulher de meia-idade. Quando me viu, ela me odiou, e não conseguiu perdoar Orson por me amar ao invés de amá-la. É por isso que The Deep não foi concluído. Foi por ciúme.

    Sobre o último filme dele, The Other Side of the Wind, Orson Welles estava trabalhando em um programa de televisão em Roma, e teve a oportunidade de fazer uma gravação engraçada sobre o presidente Nixon. Quando isso foi ao ar, Nixon enviou fiscais atrás de Orson, proibindo a produtora CBS de enviar dinheiro a Orson na Europa, acusando-o de roubar dinheiro. Isso é horrível: o mundo inteiro sabe que ele financiava obras com o dinheiro do próprio bolso, não pegava dinheiro de ninguém. Mas como ele tinha uma empresa na Suíça, foi acusado de desviar dinheiro dos impostos... Então, o dinheiro parou de chegar, e ele teve que interromper o programa.

    Nesta época, Bert Schneider, produtor de Easy Rider - Sem Destino (1969) e Cada Um Vive Como Quer (1970) chegou ao Orson com uma história, convidando-o a escrever o roteiro e dirigir. O nome do projeto era Midnight Plus One, e Orson pensou em chamar Yves Montand para o papel principal. A intenção era montar o projeto em Hollywood. Schneider pagou nossa viagem e nosso quarto no luxuoso Beverly Hills Hotel. Conversamos a conversar com Robert Mitchum, inclusive. Depois, descobriram que os direitos da obra pertenciam à Columbia, que exigia uma fortuna, e não seria possível comprá-los. Mas o hotel já estava pago para três meses, porque Schneider imaginou que este seria o tempo necessário para escrever o roteiro.

    Orson recebeu uma mensagem de um jovem chamado Gary Graver. Ele disse: “Sr. Welles, sou jovem e admiro o seu trabalho, e faria qualquer coisa para trabalhar com você, ou pelo menos encontrá-lo”. Orson achou bom, porque este jovem seria o diretor de fotografia, eu atuaria, e Orson dirigiria e seria o roteirista. Daria para começar o filme logo. Graver chegou, e estava muito empolgado. Mas no primeiro dia, ele trouxe todos os equipamentos, e esqueceu o tripé, porque estava muito nervoso. Welles disse que tudo bem, mas ele precisaria trazer tudo corretamente no dia seguinte. Graver chegou no dia seguinte, com o tripé em mãos, mas tinha esquecido a objetiva. Welles estava prestes a mandá-lo embora, e Graver foi para casa, pegou a objetiva e voltou. Ele filmou um pouquinho e mostrou a Orson. Deu para ver que ele sabia o que estava fazendo, era um profissional. Então, começamos a fazer The Other Side of the Wind, com nosso próprio dinheiro.

    Voltamos à Europa, e Orson conseguiu um emprego por lá. Levamos o material já filmado. Enquanto ele trabalhava em Verdades e Mentiras, a produtora francesa Dominique Antoine veio dizer que trabalhava para um parente do Xá do Irã, e que ela conseguiria que este homem financiasse o filme. Deu certo, e conseguimos o dinheiro, com a ajuda de um produtor espanhol, Andrés Vicente Gómez. Mas ao invés de vir ao Arizona, onde estávamos filmando, Gómez voltou à Espanha e roubou nosso dinheiro. Simples assim. O iraniano achou que Orson era irresponsável, e mandou interromper a produção. Levamos todo o material de volta à França, e a produção terminou.

    Mas parece que The Other Side of the Wind vai ser concluído agora, com a ajuda do financiamento coletivo pela Internet.

    Tragicamente, o filme já está terminado, ou quase. 45 minutos já foram editados por Orson, e existe cerca de 2h15 de material: o resto inclui alguns primeiros cortes, às vezes duas tomadas da mesma cena juntas, porque Orson ainda não tinha conseguido escolher. Mas tudo está presente, em sequência. Basta escolher as tomadas, colocar a música e eventualmente fazer algumas imagens de segunda unidade, com pessoas caminhando, por exemplo. É algo mínimo. Isso parte meu coração.

    Eu não entendo nada de crowdfunding, é algo vago. Não quero dizer nada sobre isso por enquanto – não por superstição, ou algo do tipo, mas porque estou tentando terminar esse filme há mais de 30 anos, e perdi as esperanças. O que vier, virá.

    Cidadão Kane é frequentemente considerado o melhor filme da história do cinema. O que você acha desta distinção?

    Eu acho justo, com certeza. Para mim, no entanto, e para o próprio Welles, existiam outros filmes melhores... Ele adorava Soberba (1942), que considerava superior a Cidadão Kane em muitos aspectos. Mas o seu preferido era mesmo Falstaff - O Toque da Meia Noite (1965), porque ele conseguiu expressar coisas muito íntimas para ele. Você não conhece Orson como eu, e eu conseguia compreender o que ele pensava em uma única cena: quando o príncipe Hal expulsa Falstaff da corte, o pai morre e ele está prestes a se tornar o rei. Hal está decidido a parar com a vida de excessos, e não quer sofrer com a presença deste homem incômodo.

    Neste momento, Falstaff olha para ele, e com uma sobreposição de imagens, você enxerga a desilusão, uma profunda tristeza, e o perdão. Além disso, existe uma pequena esperança de que isso seja falso, de que o príncipe volte a ser seu amigo. Todas as emoções que um ator pode mostrar estão presentes neste momento. Nunca vi nenhum ator fazer algo parecido, e nunca vou ver na minha vida. Essa é a apoteose da atuação, é Orson em estado puro. É engraçado, porque ele tinha uma personalidade forte, intimidava as pessoas, mas no fundo, tinha uma alma gentil. 

    Você também se tornou cineasta. Como foi esta experiência?

    Meu primeiro filme se chama Jaded. Eu escrevi como algo estranho à minha natureza, mas se eu fizesse qualquer outra coisa, tinha medo que dissessem que Orson tinha me ajudado no roteiro. Então fiz algo que talvez não seja perfeito, mas era algo que ele jamais teria feito. Fiz isso para me proteger. Fui convidada à Semana da Crítica do festival de Veneza, o que é uma honra para uma iniciante. Um crítico inclusive chamou meu filme de “pequena pérola de Veneza”.

    Por causa deste filme, fui convidada a fazer um filme de guerra na Croácia. Mas eu fui ingênua, porque a guerra ainda estava acontecendo. Eu deveria ter um distanciamento maior para avaliar as coisas... Sofri muita interferência do Ministério da Defesa, que tinha medo que eu dissesse algo prejudicial ao país. Por isso, não fiz algo que queria, e certo dia sequer me deixaram entrar no set, porque eu filmava uma cena que eles não queriam! Fui banida do meu próprio set de filmagem, como Orson em Soberba! Pelo menos, este foi o primeiro filme da Croácia independente, pós-Iugoslávia. Mas não me importo muito. Sou como Orson neste sentido: prefiro fazer e deixar para trás, nunca fico pensando muito no passado. Prefiro ser escultora.

    Orson era assim também, ele nunca revia os próprios filmes. Eu lembro que, por ser da antiga Iugoslávia, não tinha tido a chance de ver Soberba. Quando teve uma projeção com Orson, eu disse que queria ir, mas ele propôs que a gente saísse, para fazer outras coisas. Eu tinha até me esquecido do filme, e depois percebi que ele mudou os planos apenas para eu não assistir a Soberba! Ele explicou que tinha mudado, o contexto tinha mudado... Apenas seus princípios eram os mesmos, mas as opiniões tinham mudado. Ele não era mais o mesmo, e sempre queria ver filmes com os olhos do presente.

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