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    Notícias do Fim do Mundo
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    Notícias do Fim do Mundo

    A revolução será espetáculo

    por Bruno Carmelo

    Bem-vindos ao país Jenipapuaçu, na cidade de Kibuna, onde os moradores testemunham a sede de poder de seus governantes, os casos de corrupção e o descaso com o povo.  As demais nações, incluindo Golem, se reúnem na OPR (Organização dos Países Ricos). Não é difícil perceber que esta alegoria “figural, transbarroca e popular”, segundo os letreiros iniciais, retrata a configuração sociopolítica contemporânea. O diretor Rosemberg Cariry sequer disfarça a paisagem de Fortaleza na construção deste espaço fictício: a sede da prefeitura é nada menos do que o Centro Cultural Dragão do Mar, um dos pontos culturais mais conhecidos da cidade. O diretor investe numa fábula em que o tom lúdico, quase infantil da encenação, se encontra com a radicalidade do discurso político.

    O despojamento em relação ao realismo permite que Cariry brinque não apenas com o jogo de identidades e países, mas também com a própria mise en scène. Ora a montagem propõe uma rápida sucessão de flashes de crimes e explosões, numa ilustração do imaginário popular da violência, ora filma o sequestro do embaixador de Golem como uma brincadeira, espécie de performance artística do grupo povoado por cadáveres, bonecos e pessoas fantasiadas. Estamos no território do fake, do acessório, da liberdade em relação a qualquer expectativa de linearidade. Por isso, o conjunto se comporta de modo alegremente iconoclasta, e juvenil apesar de toda a experiência do diretor.  Isso também implica, em contrapartida, a impressão de aleatoriedade: quase tudo poderia acontecer, e de fato quase tudo acontece neste teatro do absurdo. A única coerência narrativa se encontra em sua incoerência permanente.

    Politicamente, o discurso articula um resgate romântico das revoluções populares. Alexandre Taylor (Everaldo Pontes), líder do Movimento Popular Fundamentalista Antônio Conselheiro, lidera a trupe composta por membros sem nome nem história, reduzida a aos gestos festivos da política como arte, e vice-versa. Quando o embaixador é sequestrado – num gesto que evoca tanto a história do Brasil quanto as guerras europeias – o estrangeiro não é ameaçado com armas, mas com beijos de outro rapaz do grupo. Quando se confrontam às forças da polícia, os revolucionários oferecem uma encenação, um teatro radical. Notícias do Fim do Mundo não apenas se opõe à realidade, mas debocha dela, ridiculariza as relações de poder, o jornalismo sensacionalista, nossa sede pela produção de imagens e o papel das mesmas enquanto documento. A ação revolucionária, filmada e transmitida ao vivo neste mundo de computadores e aparelhos antigos, serve como uma forma de introduzir arte forçadamente na política e nas casas das pessoas.

    O projeto também propõe uma colagem de referências ao cinema vanguardista e engajado brasileiro, o que torna o discurso tão afetuoso quanto hermético, reservado ao pequeno círculo de amigos e conhecedores das pessoas citadas. Helena IgnezCláudio AssisChico Diaz são alguns dos artistas convidados para breves aparições, além das citações óbvias a Glauber Rocha e outros defensores de uma produção marginal e febril. Este projeto dialoga inclusive com A Moça do Calendário, de Helena Ignez, outro filme de uma artista veterana que enxerga nas ferramentas artísticas e políticas de décadas atrás um modelo a ser resgatado pela juventude atual. Trata-se de uma maneira de dialogar com o cenário de crise não através do confronto, mas pelo seu avesso: imagina-se tanto um mundo à parte quanto um modo subversivo de reagir ao mesmo.

    Guardadas as proporções – esta é uma produção orgulhosamente amadora, em todos os sentidos do termo – Notícias do Fim do Mundo se alinha com o olhar de BacurauMarighella sobre a desconstrução das revoluções sociais, imaginando a luta armada não como uma perturbação nociva à ordem social, e sim como metáfora da necessidade de enfrentamento à ordem. São filmes utópicos, sonhados, que se permitem os excessos e as liberdades poéticas, a fantasia e a radicalidade. Ao contrário de algumas leituras literais que ocuparam parte da imprensa recentemente, não defendem a violência, encorajando as pessoas a pegarem seus revólveres e descerem nas ruas (qual filme jamais teve um poder parecido?). No entanto, estes filmes ilustram, em sua alegoria apaixonada e inconsequente, a necessidade de união em torno de um ideal de luta.

    Filme visto no 29º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, em setembro de 2019.

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