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    Você Não Estava Aqui
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Você Não Estava Aqui

    Recursos humanos

    por Bruno Carmelo

    Por mais que a direita e a esquerda tradicionais se oponham historicamente, elas convergem num ponto central: a importância atribuída ao trabalho na emancipação humana. Tanto Ludwig von Mises quanto Karl Marx – partindo de preceitos muitos distintos, é claro – atribuem ao trabalho um valor moral e uma noção de direito (algo que as vertentes anarquistas viriam a romper). As sociedades contemporâneas, tanto ocidentais quanto orientais, se construíram sobre a noção de que o trabalho engrandece o homem, torna-se o pilar de sustentação da família, o orgulho da pátria. Por isso, o desempregado se converte imediatamente no “vagabundo”, o indivíduo sem valores. O novo cidadão é medido por sua capacidade de produção.

    No entanto, em pleno século XXI, este modo de funcionamento está falido. Esta constitui a tese central de Sorry We Missed You, na qual Ken Loach demonstra, desde a primeira cena, o mecanismo perverso que se esconde por trás das relações contemporâneas de trabalho. Os instantes iniciais remetem ao “milagre do empreendedorismo”, a retórica empregada para defender o ímpeto de ser “seu próprio patrão”, ter liberdade de horários, começar seu negócio e condicionar o retorno financeiro à capacidade pessoal. Ricky Turner (Kris Hitchen) dialoga com o proprietário de uma franquia de entregas sobre a sua contratação. “Contratação não”, corrige o empregador, você se torna nosso colaborador, antes de disparar muitos outros eufemismos do universo empreendedor. Estamos em plena uberização do trabalho – e, por extensão, do próprio ser humano.

    A partir deste ponto, o diretor passa a explicar, de forma um tanto didática, que esta forma de emprego exige jornadas longuíssimas, não permite descanso, não fornece garantias em caso de doença ou problema familiar. Se o franqueado falta ao emprego durante um dia para resolver problemas com o filho na escola, por exemplo, ele não apenas deixa de receber dinheiro, mas ainda paga uma multa. Ricky torna-se escravo deste sistema. Ao invés de ocasionalmente fornecer instantes mais dramáticos, Loach prefere o mecanismo da gradação: o trabalho se torna cada vez pior, mais exaustivo, mais desagregador da família, mais desumano, além de fisicamente e psicologicamente perigoso. Antes se trabalhava para viver, agora se vive para trabalhar, como diria a sabedoria popular.

    Sorry We Missed You comprova as tradicionais qualidades de Loach: a filmagem naturalista, à altura dos personagens, valorizando a linguagem e os gestos das classes desprivilegiadas. A fotografia opta por luz natural, enquadramentos repetidos dentro da casa (as várias cenas à mesa), as cores neutras e pouco excitantes, na intenção de reproduzir o cansaço e a impessoalidade na qual vivem os novos operários. Trata-se de uma realização bastante competente, ainda que sem tomar riscos. Ao mesmo tempo, existe evidente ternura por Ricky, pela compreensiva esposa Abbie (Debbie Honeywood), pela filha Liza Jane (Katie Proctor) e mesmo pelo adolescente rebelde Seb (Rhys Stone), que rejeita o pai por considerá-lo submisso ao sistema. As cenas dramáticas são temperadas com momentos de humor, e para cada entrega difícil ou incompleta dos pacotes de Ricky, existem outras nas quais senhoras idosas oferecem doces em sinal de agradecimento. Para o diretor, o sistema está quebrado, mas o indivíduo ainda preserva seu potencial de solidariedade.

    Isso não impede que o drama seja um dos mais pessimistas e mesmo fatalistas de Loach. O diretor é conhecido pelo tom conciliatório, porém desta vez não enxerga alternativa à via crúcis do trabalhador – vide a conclusão, uma adaptação das tragédias gregas à contemporaneidade. Pelo tom sombrio, este projeto poderia se destacar na filmografia recente do cineasta. No entanto, nenhuma atuação se sobressai de fato (ainda que sejam todas competentes), enquanto o material evita fornecer momentos de vazão e catarse como no recente Eu, Daniel Blake, que parecia mais acessível ao público médio. O roteiro prepara uma bomba calmamente, para detoná-la apenas no final, recusando-se a coletar os cacos ou analisar as consequências. Enquanto isso, tanto os personagens quanto o público são cozidos a fogo baixo, testemunhando uma série de abusos travestidos de realização pessoal e modernização dos valores trabalhistas.

    Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.

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    Comentários

    • Ana Prosini
      Um filme para pensar...
    • Jean Silveira Santos
      Verei!rs
    • Ana Luiza Borges
      Excelente filme. Um dos mais fortes de Ken Loach.
    • Jean Silveira Santos
      Temática mais que necessária atualmente! A crise que se impera no mundo do trabalho, tendo como ênfase a realidade brasileira, demonstra números assustadores de trabalhadores e trabalhadoras adentrando na informalidade, mais especificamente no trabalho por conta própria. É fundamental saber diferenciar o chamado empreendedorismo, utilizado pelo ideário neoliberal, capturado, sobretudo pelo capital e os governos - nos quais, em decorrência de isoladas particularidades de êxito no labor independente (e precário) atribuem status de meritocracia a estes poucos sujeitos - do trabalho por conta própria, pois, essa segunda inclinação surge da necessidade de sustento, fuga da miséria, etc., além disso, toma importância maior quando o mercado formal já não consegue cumprir a prometida estabilidade através do emprego. Ao contrário do empreendedorismo, que por sua vez, é uma oportunidade de expansão de capital para aqueles que detêm poder financeiro de investimento...
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