Homem, mulher, monstro
por Bruno CarmeloTodo grande festival de cinema tem entre seus competidores algum filme estranhíssimo, inclassificável, do tipo que desperta amores ou rejeições, mas dificilmente deixa o espectador indiferente. Talvez o sueco Gräns (Border, em inglês) seja o exemplar em questão no 71º festival de Cannes. Mistura de drama, comédia, suspense e fantasia; fábula sobre o preconceito racial, sobre a degradação do ser humano e sobre a pluralidade sexual e de gênero, ele possui tantos temas e vertentes que chega a ser incrível a sua capacidade em equilibrá-los com tamanha maestria.
Parte considerável da força deste projeto se encontra num rosto, o de Tina, mulher de rosto singular. Com a testa protuberante, os olhos profundos, a pele marcada por cicatrizes e a arcada da boca sempre aberta, ela se encontra no meio termo entre a deficiência, a deformidade e uma noção mais ampla de monstruosidade. No entanto, apesar da aparência prejudicar a sua vida afetiva, ela possui um talento muito útil ao trabalho. Afinal, esta policial de um aeroporto possui um senso de odor extremamente refinado, podendo cheirar não apenas álcool e droga nas malas, mas também culpa, raiva, ressentimento dos passageiros. Quando você faz algo errado, Tina percebe pelo cheiro.
Esta personagem de aptidões excepcionais é tratada com respeito invejável pelo diretor de origem iraniana Ali Abbasi, e também pela excelente atriz Eva Melander, devidamente contida na intenção de evitar o grotesco. O mesmo ocorre com Vore (Eero Milonoff), homem encontrado por ela no aeroporto, e dotado de uma deformidade estranhamente parecida com a sua. Muitos roteiristas se contentariam em sugerir um romance entre ambos e garantir o final feliz, mas Gräns foge a soluções fáceis. No estranho relacionamento entre os dois humanos-monstros, o filme encontra espaço para detalhar o folclore nórdico, expor redes de pedofilia e encontrar representações alternativas para alienígenas e lobisomens.
O projeto fascina pela originalidade radical, mesmo partindo de códigos tão conhecidos. Além disso, funciona como história de origem de uma super-heroína, no caso, esta mulher com capacidade sobre-humana de avaliação pelos cheiros. Cada detalhe é cuidadosamente abordado pela fotografia realista, pelos enquadramentos atentivos mas jamais óbvios, pela direção de arte precisa na decoração e nos figurinos. A fascinação de Tina e Vore por insetos, a conexão de ambos com a natureza de modo geral, são elementos muito bem trabalhados no decorrer da trama. Nenhum símbolo de estranhamento fica sem a devida utilização até o final.
Por sua mistura de gêneros e pela premissa quase cômica, Gräns pode ser um projeto difícil de apresentar ao público. Os fãs de terror verão um ritmo mais cadenciado do que a média do gênero, além de pouco sangue e violência, enquanto cinéfilos atentos aos dramas estrangeiros podem ficar chocados com as atitudes explícitas dos protagonistas. O diretor criou um filme para confundir, perturbar, como talvez sejam todos os grandes filmes. Resta saber se existe espaço para a entrega ao desconhecido no pragmático circuito distribuidor.
Filme visto no 71º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2018.