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    Quando o Galo Cantar Pela Terceira Vez Renegarás Tua Mãe
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Quando o Galo Cantar Pela Terceira Vez Renegarás Tua Mãe

    Psicose

    por Rodrigo Torres

    Inácio é um homem esquizofrênico que trabalha como porteiro de um prédio na zona sul do Rio de Janeiro. Ele divide um apartamento pequeno no mesmo condomínio com o pai doente, que também trabalha no edifício, como zelador; e a mãe, Zaira, problemática, impaciente, cruel. O trio vive uma vida precária. Claustrofóbica — pelo espaço, por doenças, pelas escolhas. E pelo cotidiano: tudo se repete todo dia. As mesmas brigas, a mesma janta. A vida só muda quando o patriarca morre e passa a faltar carne na sopa. E a perda do apartamento se torna iminente.

    Aaron Salles Torres realiza uma ótima estreia em longas-metragens. Sua primeira boa decisão no filme Quando o Galo Cantar Pela Terceira Vez Renegarás Tua Mãe é fugir de um clichê do cinema nacional autoral, independente, que tende a filiar tais situações dramáticas à crítica social — o que não é exatamente um problema. Porém, ao associar a premissa descrita acima ao cinema de gênero, ao suspense, o jovem diretor e roteirista propõe algo diferente. A realização cinematográfica em si é o outro ponto positivo.

    A concepção narrativa de Quando o Galo Cantar Pela Terceira Vez Renegarás Tua Mãe é tão peculiar quanto o seu título. Na primeira cena, a câmera surge rente ao chão, sobre um saco de lixo. Em seguida, um plano detalhe de Zaira chupando manga antecipa as ações repulsivas da personagem (aspecto que surge questionável no âmbito da concepção da mãe até redimi-la, já no fim). O foco na tela multidividida das câmeras de vigilância, e o espelho que subdivide a tela, e o desfoque pontual, sublinham a confusão da mente de Inácio. Também na escolha de ângulos radicais e na fotografia anti-natural de tom esverdeado (transmutando para o vermelho e outras cores sempre com adequação), toda a composição visual do longa-metragem discursa a estranheza de sua trama.

    Essa mise-en-scène austera é ainda potencializada por uma dramaturgia poderosa. Tanto por mérito de Salles Torres, que — muito curiosamente — se baseou em diálogos estritos, e tensos, de seus vizinhos reais para construir o roteiro; como pelas boas atuações de Fernando Alves Pinto e Catarina Abdalla.

    A atriz reproduz falas comuns de um tipo e uma classe social com espirituosidade, sendo sutilmente engraçada, ao mesmo tempo em que constrói uma mulher ferida que é odiosa nos dois sentidos: manifesta seu ódio e evoca ódio no espectador. O ator já se aproveita de sua dicção distinta como nunca, e tem o mérito de caracterizar bem a condição de Inácio e torná-lo alguém com quem o público se importe, embora tão aversivo quanto a mãe. Por esse motivo, o filme tem um grande momento, concretizando sua atmosfera latente em tensão pulsante na sequência em que o protagonista espia Antônio (Lucas Malvacini), o vizinho por quem é obcecado.

    Quando o Galo Cantar Pela Terceira Vez Renegarás Tua Mãe é uma frase de Clarice Lispector, presente no conto "Feliz Aniversário", sobre a convenção social que ata laços familiares puídos de afeto. Sua inspiração é a Bíblia; mais especificamente, a história em que Pedro trai Jesus. Aaron Salles Torres trata esses temas sem moderação, o que torna a trama previsível. Mas isso não configura um grande problema, haja vista os métodos do cineasta, a forma do filme, sua capacidade de envolver o espectador rumo ao desfecho esperado. Outro elemento que atenua a surpresa pela resolução do enredo é o modo como a psicose de Inácio e sua relação doentia com a mãe ecoa — veja só — o clássico Psicose, de Alfred Hitchcock. O que não é falha alguma, e, sim, uma bela referência.

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    Comentários

    • lucas cantino
      Muito boa sua crítica,Rodrigo !
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