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    O Cidadão Ilustre
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    O Cidadão Ilustre

    Para que serve a arte?

    por Francisco Russo

    Se já é lugar comum elogiar a qualidade dos roteiros argentinos, é preciso abrir um capítulo específico para tratar de O Cidadão Ilustre. Exibido no Festival de Veneza 2016, onde saiu com o prêmio de melhor ator, o novo longa-metragem dirigido pela dupla Mariano Cohn e Gastón Duprat (O Homem ao Lado) é, ao mesmo tempo, incômodo, instigante e universal. A começar pela abordagem escancarada da pergunta que dá título a este texto, não apenas através de provocações bem-vindas mas também pela própria estrutura da narrativa, que busca cutucar o espectador a todo instante.

    A história começa com o escritor argentino Daniel Mantovani (Oscar Martinez, premiado em Veneza, em ótima atuação) recebendo a maior de todas as láureas: o Nobel de Literatura. Com uma câmera documental registrando o momento, Daniel sobe ao palco e, em seu discurso, agradece dizendo que também lamenta o recebimento do prêmio por ele significar o "fim de sua aventura criativa". O Nobel seria a representação maior de que seu trabalho tornou-se palatável ao grande público, perdendo a capacidade de incomodar o leitor - função maior da arte, ele ressalta.

    O inevitável contraste entre a louvação e o tapa com luva de pelica sobre o que representa, institucionalmente e simbolicamente, já é suficiente para uma autocrítica contundente acerca de premiações em geral. Só que o belíssimo roteiro de Andrés Duprat vai mais longe e, a partir deste confronto inicial, desenvolve uma estrutura que, ela própria, bate de frente com as crenças de seu personagem principal, abordando ainda outro elemento, essencialmente humano: a vaidade.

    A jornada de Daniel tem início a partir de um convite de sua cidade natal, a pequena Salas, de onde saiu há 40 anos. Por mais que o local seja fonte de inspiração de todos os seus trabalhos, ele possui um profundo desprezo pela região graças às suas peculiaridades interioranas, muito distantes do lado cosmopolita da Europa - Daniel é essencialmente cínico e, como tal, não aceita certos comportamentos. Ao receber o convite para ir a Salas e lá receber o prêmio de cidadão ilustre, ele aceita - em parte por saudosismo, muito pela vaidade de ser o filho pródigo louvado pelos seus.

    A partir de então, O Cidadão Ilustre torna-se um imenso embate, sob vários aspectos. Mais do que propriamente o culto a um grande escritor, há a louvação vazia à celebridade, tão comum nos dias atuais. Há também uma certa desconstrução do próprio livro, no sentido de deixar de lado seu valor artístico para ser tratado como mero papel - o que, por outro lado, é também um ataque direto à vaidade do próprio autor. Há o inevitável encontro com o passado, e as consequências decorrentes dele - sob âmbito pessoal e também de quem está ao redor. E, mais do que tudo, há a truculência inerente ao próprio ser humano, quando interesses pessoais são confrontados.

    A partir de uma crítica ácida e bastante cínica, os diretores pouco a pouco constroem um espelho da própria sociedade e das dificuldades existentes em, diante de suas peculiaridades, se encontrar em um mundo globalizado. Entretanto, é interessante chamar a atenção que o roteiro de Duprat busca a mão dupla: ao mesmo tempo em que aborda tradições locais com uma boa dose de desprezo, é capaz de apontar o dedo ao seu personagem principal para dizer que ele se vendeu para uma cultura estrangeira. Não há propriamente uma preferência, visto que o próprio Daniel é apresentado de forma a que o público não se afeiçoe a ele. A beleza maior está no reflexo da dualidade existente no mundo atual, retratado não só pelo comportamento dos habitantes de Salas mas também do próprio escritor, com sua vaidade e capacidade analítica intrínsecas.

    Disposto a cutucar, O Cidadão Ilustre instiga diversos debates acerca do filme e da sociedade atual de forma a, ele próprio, assumir a função da arte proclamada por Daniel Mantovani lá no início do longa-metragem, tanto pelas questões levantadas quanto pela estrutura narrativa - atenção ao desfecho, bem interessante. Curiosamente, a premiação dada ao filme em Veneza lhe traz a mesma questão: seria este um discurso também palatável, mesmo em seus questionamentos?

    Com a palavra, o espectador.

    Filme visto durante a cobertura do Festival do Rio, em outubro de 2016.

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    Comentários

    • Ana Parreira
      Esse filme me impactou um bocado, pois narra quase que impecavelmente cada episódio passado em minha cidade, quando fui convidada a lançar ali um livro meu. Aceitei, imaginando que meu desejo seria cumprido, porque eu só queria me sentar na mesa de um bar com nada mais que meia duzia de amigos e pronto, o livro estava lançado. Mas isso não aconteceu. A coisa virou um evento e ficou fora de controle. Foi um sofrimento danado e ainda é uma ferida aberta. Não sei se um dia eu conseguiria colocar tudo no papel. Há outro filme que também chega perto desse tema, que é A Fita Branca. Tenho uma série de questionamentos sobre publicar algo assim, expondo a cidade de origem. Certo que em toda cidade do interior tem sua parte de inocência e outra de malícia - mas depois de uma forte experiência, as boas ficam eclipsadas e você já não consegue quase distinguir umas das outras. Em todo caso, seria mais fácil se tudo fosse meramente ficção. Tcheckhov propõe uma direção a seguir, ele diz: Fala de tua aldeia, que estarás falando do mundo.Mas não é tão simples. Tanto que, depois de alguns anos, esta é a primeira vez que consigo fazer um comentário e publicá-lo aqui, esperando não me arrepender em seguida. Mas este tipo de história é universal. Alguém deve ter vivido na pele o papel contado em O Cidadão Ilustre.
    • Klaus Nickel
      Bom filme. Ritmo um pouco lento, mas interessante.
    • PAULO Alves
      muito bom filme, e a intenção do roteiro é cumprida com excelência. O talento do ator é também importante, mas o roteiro nos instiga e nos prende a atenção do começo ao fim.
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