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    Os Dias com Ele
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Os Dias com Ele

    Cinema no divã

    por Bruno Carmelo

    Os Dias com Ele não traz uma premissa incomum no documentário, pelo contrário: o filme foca na relação entre a diretora Maria Clara Escobar e seu pai, o filósofo Carlos Henrique Escobar. Através dos traumas pessoais, a narrativa pretende espelhar os traumas da nação, principalmente relacionados ao sombrio período da ditadura militar. As relações família-pátria e público-privado têm constituído o eixo de dezenas de documentários nacionais, e este é mais um exemplar da boa qualidade deste grupo de obras.

    O trunfo do filme é a personalidade muito específica de Escobar. Recluso em Portugal e voluntariamente afastado de amigos ou familiares, o entrevistado demonstra grande amargura em relação à história, à política (seja ela de esquerda ou direita) e às pessoas de maneira geral. A misantropia se reflete na relação com a própria filha, que Escobar trata com frieza e certa ironia – ele chega a afirmar que, embora tenha ficado feliz com o nascimento dos filhos, só se tenha realizado de fato com a compra de seus gatos. Esta personalidade improvável e involuntariamente cômica desperta atenção, assim como a conduta controladora (Escobar pretende compor as cenas e os enquadramentos no lugar da diretora) e a recusa de abordar diretamente temas como a tortura.

    A cineasta expõe essas questões com uma franqueza notável, verbalizando as suas intenções em relação à obra e mantendo na versão final as críticas de seu pai, tanto ao projeto quanto a ela mesma. Maria Clara Escobar compreende que esta psicanálise familiar torna-se o próprio tema de seu filme, e que uma eventual idealização do pai enfraqueceria o projeto. Por isso, mantém e alimenta este perverso jogo de dominação entre pai e filha. No entanto, embora o tom do diálogo entre os dois seja bastante agradável, é uma pena que a cineasta dependa tanto destas conversas e não construa mais imagens simbólicas dos traumas evocados. Algumas sequências interessantes, como o momento “Este não é o meu pai”, correspondem a esse tipo de reflexão metafórica, mas são minoritárias no filme.

    Por mais interessante que seja, Os Dias com Ele funciona menos para abordar a ditadura militar do que para retratar a dificuldade em representá-la. A metalinguagem serve bem para criar distanciamento em relação ao tema abordado, mas não para explicá-lo ou contextualizá-lo. De modo geral, seria interessante que alguém estudasse essa onda de documentários autobiográficos recentes, como Construção, Elena, Marighella, Sobral – O Homem que Não Tinha Preço, Mataram Meu Irmão, Francisco Brennand, Diário de uma Busca e outros. É compreensível que os diretores tenham interesse nas histórias de seus familiares, e que a proximidade com as pessoas retratadas facilite a produção. Também é verdade que a maioria destes filmes apresenta uma alta qualidade.

    Mesmo assim, o universo narcisista destas produções demonstra uma tendência destes jovens diretores a não buscar compreender uma realidade muito distante de sua própria vivência. É um cinema belo, intimista, que também contribui a refletir sobre os problemas da sociedade, mas que toma poucos riscos estéticos e cinematográficos. Trata-se de uma produção rica na compreensão do indivíduo como parte de um todo, mas pobre na vontade de retratar a alteridade. Um delicado e prolífico cinema-umbigo. 

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