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    O Menino e a Garça
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    O Menino e a Garça

    Em "pausa" na aposentadoria, Hayao Miyazaki apresenta uma das animações mais bonitas dos últimos anos (e do Studio Ghibli)

    por Diego Souza Carlos

    Hayao Miyazaki é um dos grandes nomes do nosso cinema contemporâneo. Impulsionando as produções do Studio Ghibli por todo o mundo, a lenda japonesa é responsável por algumas das animações mais importantes da história da sétima arte. Portanto, receber a notícia de que ele estaria deixando a aposentadoria para contar mais uma história é, sem sombra de dúvidas, um presente para cada pessoa que adora cinema - e poder ver um de seus filmes na tela grande, então, é um privilégio.

    Com a premissa de ser o filme que tirou o cineasta do descanso, O Menino e a Garça chegou de maneira misteriosa: não teve uma divulgação típica, pois até o último instante, quando de fato chegou ao ocidente, poucas imagens foram veiculadas a fim de manter o máximo da narrativa sob uma interessante névoa de segredos. Após assistir as pouco mais de 2h do longa, acredito que muitos vão agradecer por isso.

    Levemente inspirado no romance homônimo de 1937, de Genzaburō Yoshino, a trama tem como protagonista Mahito Maki, um garoto de 12 anos que vive no Japão de 1943, durante a Guerra do Pacífico. Após a morte de sua mãe, seu pai se casa com a irmã mais nova dela, e se mudam para a casa dela no campo. Nesse ambiente, ele conhecerá uma garça cinza que o levará a uma torre misteriosa, onde viverá uma jornada na qual descobrirá a verdade sobre si mesmo.

    O traço que cria sonhos e pesadelos

    Studio Ghibli

    O Menino e a Garça pode ser um dos filmes mais densos da filmografia de Hayao Miyazaki. Embora seu antecessor, Vidas ao Vento, também tenha a seriedade como guia, existe uma mistura de gêneros que torna o novo projeto mais complexo que os demais, porém tão provocativo quanto muitas histórias do passado.

    Utilizando uma mistura de texturas, dessa vez o realizador abandona parte da simetria e precisão em paisagens para criar cenários abstratos que enaltecem a beleza natural do Japão - e ainda ajudam a narrativa a firmar seu lugar de fábula. Desde os primeiros momentos do filme, o diretor já estabelece como o contexto de Mahito é responsável por criar aquela criança complexa.

    Com elementos da guerra e suas consequências, o fato do protagonista ser um garoto privilegiado não o poupa de ser afetado por um dos maiores horrores da humanidade. Há uma cena neste início, inclusive, que firma seus pés no terror de maneira não óbvia. Após descobrir que o prédio onde sua mãe está foi vítima de um incêndio, o jovem segue correndo pelas ruas enquanto um turbilhão de possibilidades passa por sua mente.

    Nesta sequência, por exemplo, não há simetria ou formas exatas, todas as pessoas que trombam com Mahito são apenas figuras disformes que se misturam em seu maior pesadelo - perder a pessoa que mais ama. Em um esforço autobiográfico, Miyazaki mostra ao mesmo tempo a visão de uma criança sobre o mistério da morte e a iminência da solidão em poucos segundos, através de escolhas estéticas essenciais para enriquecer a história.

    Alice, é você?

    Studio Ghibli

    Apesar destes primeiros momentos terem já alguns elementos fantásticos, eles estão muito mais na perspectiva do que nos fatos. A linha entre o real e a imaginação é fina. Em pouco tempo, o "vale da estranheza" já conhecido por outros filmes do diretor, como A Viagem de Chihiro e O Castelo Animado, começa a se manifestar lentamente.

    Assim como o luto abala todas as pessoas que ficam, o mundo de Mahito começa a se transformar e o garoto entra em um compasso errante de situações - tudo se agrava com a aparição de uma garça que ele desconfia não ser nada comum. Sem verbalizar boa parte das emoções do menino, mas com cenas regadas a sofrimento e até mesmo autoflagelo, Miyazaki percorre pelos efeitos dessa grande perda através das atitudes descompassadas de Mahito.

    O afeto de sua madrasta, agora grávida, e a relação superficial com o pai piora a condição do garoto. Ainda que sempre respeitoso, há um turbilhão de acontecimentos que casam com o chamado dessa criatura que ronda sua nova casa. Com uma singela referência a Alice no País das Maravilhas, a jornada aventuresca do protagonista começa, de fato, quando consegue adentrar em uma torre abandonada que parece guardar um antigo segredo de sua família.

    Como você vive?

    Studio Ghibli

    Muitos que esperam uma trama simples ou apegada apenas ao drama devem se surpreender com O Menino e a Garça. Ao adentrar em um novo mundo, onde animais falam e criaturas fantásticas perambulam por florestas e campos, Mahito é transportado para uma missão ancestral. Não apenas o desejo de conter o sofrimento pela perda da mãe está em pauta, como a sua própria existência em um mundo tomado pela violência da guerra, em que a normalidade deu lugar à estranha ameaça da morte, do fim.

    Após entrar nessa odisseia que coloca as próprias convicções em xeque, o protagonista precisa lidar com questões que, em tese, vão muito além de qualquer sofrimento individual para aprender algo sobre si mesmo e amadurecer. Aos 12 anos, ele precisa admitir suas próprias verdades. Brincando com outra dimensão e um mundo onde espíritos tentam encontrar o seu fim, com direito a elementos de alta fantasia, o longa pontua diversas provocações sobre como nascimento, o peso das escolhas, o que define o bem e o mal - e a complexidade de ações que levam pessoas adiante.

    Colocando diversas referências a filmes do Studio Ghibli durante a narrativa, Miyazaki também cria um amálgama temático com base no trauma da Segunda Guerra Mundial. A angústia do jovem Mahito funciona como uma alegoria ao período que marcou a humanidade sem abandonar o caráter semi biográfico da narrativa.

    Studio Ghibli

    Em uma era onde a animação digital ainda domina os estúdios, mesmo com projetos experimentais como Homem-Aranha: Através do Aranhaverso, Gato de Botas 2: O Último Desejo e A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas, o longa do diretor japonês também é um aceno à indústria cinematográfica sobre as belezas e o frescor latente da animação 2D. Na iminência da problemática de artes feitas por inteligência artificial, O Menino e a Garça reforça como a visão humana é essencial para se contar boas histórias.

    Confiante no estilo que moldou o lendário estúdio asiático, trata-se de uma das narrativas mais belas e enriquecedoras dos últimos anos. Vai fazer o público se lembrar dos encantos e estranhezas de A Viagem de Chihiro, enquanto questiona cada um sobre como é viver - e encontrar esperança - em um mundo que ainda alimenta as chamas da guerra.

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