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    Selma - Uma Luta pela Igualdade
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Selma - Uma Luta pela Igualdade

    A política como religião

    por Bruno Carmelo

    A princípio, Selma - Uma Luta Pela Igualdade não se destaca em meio a dezenas de biografias que chegaram aos cinemas recentemente. O seu modelo é clássico, tanto na maneira de filmar (câmera colada no rosto do personagem principal, grandes planos em gruas para cenas de multidões, letreiros indicando locais e datas) quanto no roteiro (linear, cronológico, explicativo). No entanto, por trás desta aparência de grande obra elegante e convencional, o filme esconde uma série de qualidades incomuns que merecem ser destacadas.

    O primeiro mérito está na maneira de abordar Martin Luther King, Jr. Várias biografias mostram seus retratados como pessoas de caráter inabalável, virtuosas, bons pais, bons maridos e bons amantes. São pessoas morais, que agem pelas emoções, pelos impulsos, porque o aspecto instintivo seria reflexo de um caráter intrinsecamente bom. Mas Selma prefere enxergar Martin Luther King como um homem político, um militante movido pela razão. Não se insiste em sua relação com as mulheres, com os filhos, com os inimigos. Apesar de testemunhar dezenas de injustiças, ele não chora, não quebra os móveis da casa quando descobre que uma criancinha foi agredida. Esse é um homem essencialmente cerebral, tático.

    O período escolhido também merece atenção. Seria fácil abordar o líder pelo prisma de sua morte prematura, fazendo dele um mártir, ou tomando como ponto de partida o célebre discurso “I Have a Dream”, retratando-o como ícone. Mas o filme da diretora Ava DuVernay prefere um momento igualmente importante, mas menos midiático, e muito complexo do ponto de vista político: a marcha de Selma a Montgomery, no Alabama, pelo direito do voto aos cidadãos negros. O episódio foi marcado por conflitos políticos dentro da própria militância negra (principalmente sobre o uso da violência em protestos) e entre o presidente e os governadores.

    No papel principal, David Oyelowo contribui de maneira excepcional a este projeto. O ator evita idealizar o personagem, fugindo das grandes cenas repletas de emoção, de catarse, ou seja, evita a atuação-espetáculo. Comparado a outros atores nesta temporada de premiações - Jake Gyllenhaal e seus olhos esbugalhados, seus acessos de raiva, ou Eddie Redmayne e sua tentativa em transformar Stephen Hawking no homem mais carismático do mundo - Oyelowo é surpreendentemente contido, complexo, conseguindo transmitir através de silêncios e da força do olhar o que atores histriônicos transformariam em deificação.

    Outros aspectos do filme merecem destaque. A fotografia, principalmente, é espetacular. O tratamento da luz em cenas escuras, como nos quartos das casas ou na prisão, impressiona pelos detalhes, isso sem falar em momentos à luz do dia, como o primeiro enfrentamento na ponte - a cena mais bela e poderosa de todo o filme. DuVernay sabe explorar o som nas cenas clímax, desacelerando o ritmo ou retirando o diálogo e o som ambiente nos momentos necessários. Embora não inove, a sua direção é precisa, elegante.

    Com tantas qualidades, é uma pena que Selma - Uma Luta Pela Igualdade abrace alguns artifícios fracos das biografias. A trilha sonora repete a cartilha sentimental das produções do gênero, com a mesma mistura de piano e violino tristíssimos indicando quando o espectador deve chorar (algo semelhante aos risos artificiais em seriados cômicos de televisão, indicando quando se deve rir). Os letreiros no final, apontando os rumos futuros de cada personagem, e o uso de imagens de arquivo, para comprovar a semelhança com a história real, transparecem a pouca confiança da diretora em suas próprias escolhas e também na capacidade do espectador em compreender, imaginar e sentir emoções por si próprio.

    O tom sisudo também pode desencorajar o público médio a embarcar no filme. Não há momentos de respiro nesta dinâmica baseada quase inteiramente em diálogos acelerados, com grandes frases sobre a política, sobre os direitos humanos, sobre o estado do mundo. Estes homens e mulheres seríssimos são vistos apenas pelo prisma de militantes e revolucionários, nunca de pessoas quaisquer, que também comem, dormem, se divertem. Neste sentido, o filme tende à idealização, não de Martin Luther King, Jr., mas da política como única arma possível de transformação social. Selma é um filme político, não por tratar de personagens políticos em sua história, mas por defender uma ideia essencialmente engajada.

    É curioso que tantos diálogos políticos sejam proferidos por pessoas de fé, dentro de igrejas, após as missas, em tom de sermões. Um aspecto histórico bem retratado nesta trama é o uso da religião - cristã, no caso - como ferramenta política. O pastor protestante Martin Luther King lutava pelo direito das minorias, pela redução das desigualdades, pela retirada de privilégios da elite. Esta é uma boa luta, ainda mantida por parte das comunidades cristãs. Mas nos tempos conservadores atuais, com tantos políticos fazendo da religião uma política, é interessante ver um homem que optou pelo caminho contrário, fazendo da política uma religião.

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    Comentários

    • João O
      Selma é maravilhoso, seja na forma contida de contar a história, seja na interpretação segura e inspirada de David Ayelowo!
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