O anime Fullmetal Alchemist, exibido em 2003, é uma das produções mais emblemáticas do universo dos animes, não apenas por seu enredo envolvente e personagens complexos, mas também pela maneira com que aborda questões profundas de moralidade, sacrifício e os limites do conhecimento humano. Dirigido por Seiji Mizushima e baseado no mangá de Hiromu Arakawa, o anime se distingue por seu tratamento único do material de origem, divergindo significativamente da história original à medida que avança, o que proporciona uma experiência narrativa de alto impacto, mas que também provoca debates sobre a eficácia dessa abordagem criativa.
O enredo de Fullmetal Alchemist segue os irmãos Edward e Alphonse Elric, que, após tentarem ressuscitar sua mãe através da alquimia, acabam sofrendo consequências devastadoras. Edward perde uma perna, e Alphonse perde todo o seu corpo, com sua alma vinculada a uma armadura. Determinados a restaurar seus corpos, eles partem em uma jornada para encontrar a lendária Pedra Filosofal, que, segundo a lenda, tem o poder de realizar transmutação sem limites.
O enredo de Fullmetal Alchemist é construído sobre uma base sólida de conflitos humanos universais, como a perda, o arrependimento, o desejo de redenção e o preço do conhecimento. A primeira parte do anime segue uma linha narrativa que é amplamente fiel ao mangá, com a introdução do mundo de Amestris e suas leis, mas à medida que a trama se desenvolve, o anime se desvia do material original, criando uma história própria, que culmina em uma conclusão que é tanto profunda quanto sombria. Esta mudança significativa ocorre por volta do episódio 26, quando os criadores do anime, conscientes de que o mangá ainda estava em andamento, tomaram a decisão de seguir um rumo narrativo independente. Essa divergência resultou em uma narrativa que, embora envolvente, não pode ser considerada uma adaptação fiel da obra de Arakawa.
A decisão de criar um enredo original trouxe uma série de vantagens e desvantagens para o anime. Por um lado, ela permitiu maior liberdade criativa e uma narrativa mais fechada, que foi capaz de explorar questões mais filosóficas e existenciais, como a relação entre os seres humanos e o poder absoluto (representado pela alquimia). Por outro lado, essa divergência da obra original gerou uma sensação de inconformismo entre os fãs mais puristas, que esperavam ver a história do mangá se desenrolar com a mesma fidelidade que seria observada em Fullmetal Alchemist: Brotherhood (2009). O enredo, portanto, pode ser visto como um exercício de reinterpretação criativa, mas também de desgaste da relação com os fãs que buscavam uma conclusão mais coesa com o material original.
Embora o anime de 2003 não se encaixe exatamente no modelo de atuação tradicional, como o veríamos em uma produção live-action, a atuação vocal (dublagem) desempenha um papel crucial na imersão e no impacto emocional da obra. A série conta com um elenco de vozes de grande talento, especialmente em sua versão original japonesa, com os dubladores Romi Paku (Edward Elric) e Rie Kugimiya (Alphonse Elric) se destacando por suas performances carregadas de emoção e intensidade. A química entre os dois personagens, cuja relação de irmãos é a alma da história, é extremamente bem construída, e as performances vocais dos atores refletem a carga emocional dos eventos que se desenrolam.
Além disso, a atuação vocal das figuras secundárias, como Roy Mustang e Riza Hawkeye, também se destaca pela entrega emocional, o que contribui para a riqueza do elenco e a credibilidade das interações. A atuação de Takahiro Sakurai como o vilão Father é igualmente significativa, conferindo uma profundidade psicológica ao personagem que o torna não apenas uma figura de poder, mas também um reflexo da complexidade moral da narrativa.
O roteiro de Fullmetal Alchemist é um dos aspectos mais fortes da série, e é, de fato, a principal responsável pela complexidade da obra. Embora o anime tenha se desviado do mangá, a adaptação do roteiro consegue mesclar com maestria momentos de ação com reflexão filosófica profunda. A escrita não se limita a desenvolver uma narrativa de aventura, mas se torna uma plataforma para questionamentos éticos e existenciais sobre o que significa ser humano, as fronteiras do conhecimento e a responsabilidade dos cientistas.
A questão da transmutação e do uso do conhecimento de forma irresponsável é uma constante no roteiro, e isso se conecta com a moral central da obra: o sacrifício. O roteiro também não evita abordar temas como a guerra, o sofrimento, e a busca desesperada por poder. A habilidade do roteirista em equilibrar o ritmo da ação com momentos introspectivos, sem perder a coesão do enredo, é um dos principais méritos da série. No entanto, os desfechos criados para os personagens — principalmente para Edward e Alphonse — têm uma qualidade de aceitação amarga, que pode ser tanto uma virtude quanto uma limitação, dependendo da perspectiva do espectador.
A cinematografia de Fullmetal Alchemist é outro ponto forte que contribui significativamente para a atmosfera emocional e visual da série. A direção de arte e a escolha das cores são deliberadas e eficazes em transmitir os tons sombrios e, por vezes, opressivos da história. A obra utiliza de forma inteligente a iluminação e a composição de cenas para enfatizar os temas centrais, como a perda e o sacrifício, com grandes cenas de combate que são habilmente equilibradas com momentos mais calmos, onde a introspecção dos personagens pode ser mais explorada.
A música, composta por Michiru Ōshima, complementa essa cinematografia, com uma trilha sonora rica em temas orquestrais que aumentam a carga emocional das cenas, particularmente nas sequências mais dramáticas. A escolha musical é um reflexo do tom da obra, unindo o épico com o íntimo, criando uma experiência audiovisual completa.
O final de Fullmetal Alchemist de 2003 é um dos mais controversos e memoráveis da história do anime. Em vez de seguir a linha do mangá, que ainda estava em andamento, o anime opta por criar uma conclusão original que fecha a narrativa de uma maneira trágica e reflexiva. Edward Elric, em um sacrifício final, é transportado para o mundo real, enquanto Alphonse Elric permanece em Amestris, completando sua jornada de autodescobrimento e sacrifício. A natureza abrupta e fatalista do final, com os irmãos separados e os sacrifícios de ambos, é uma poderosa meditação sobre os custos do conhecimento e do desejo humano.
Embora o final seja bem recebido por muitos pela sua profundidade emocional, ele é também visto como uma escolha divisiva. Para alguns, essa conclusão triste e sem uma resolução perfeita é uma reflexão forte sobre a vida real e a inevitabilidade da perda. Para outros, representa uma falha em entregar uma conclusão mais satisfatória e "esperançosa".
O anime de 2003, Fullmetal Alchemist, é uma obra-prima da narrativa de anime, mas com falhas notáveis. Seu enredo, embora intrigante e emocionalmente envolvente, se distancia da obra original de forma a criar uma experiência única, mas não sem custos. A atuação vocal e a escrita são impressionantes, capazes de imergir o espectador em um mundo de dilemas morais e existenciais profundos. A cinematografia e a trilha sonora, por sua vez, complementam a narrativa com uma rica paleta visual e auditiva. No entanto, seu final controverso e a escolha de um rumo narrativo independente geram divisões, o que pode impactar a recepção por parte dos fãs que desejam uma adaptação mais fiel.
Fullmetal Alchemist (2003) é um anime que desafia o espectador, forçando-o a refletir sobre questões fundamentais da vida, do sacrifício e do poder, e se estabelece como uma obra essencial no cânone dos animes.