A Apple TV+ vem consolidando sua imagem como produtora de séries de prestígio, e parte desse reconhecimento se deve a apostas ousadas em thrillers envolventes. Foi assim em Black Bird, minissérie que conquistou público e crítica e rendeu indicações ao Emmy, com Dennis Lehane no comando e Taron Egerton brilhando no papel principal. Quando se anunciou que os dois voltariam a colaborar em Cortina de Fumaça (Smoke), havia um entusiasmo quase automático: a promessa de mais uma obra instigante, densa e capaz de combinar drama pessoal com tensão criminal. Infelizmente, o resultado ficou longe do esperado.
Baseada no podcast Firebug, a série parte de uma premissa potente: os incêndios criminosos investigados pelo lendário John Leonard Orr, que marcaram a Califórnia dos anos 80 e 90. O fogo, aqui, não é apenas elemento destrutivo, mas também metáfora de obsessões, traumas e segredos que consomem os personagens. A ideia inicial é promissora e traz frescor ao gênero, já que não é comum vermos o fogo tratado quase como uma entidade narrativa. Nos primeiros episódios, esse recurso é eficaz. A trama nos apresenta Dave Gudsen (Taron Egerton), um investigador atormentado pelo passado, e sua parceira, Vivien (Jurnee Smollett), também marcada por feridas emocionais. Ambos encontram no trabalho uma forma de lidar com suas cicatrizes, enquanto mergulham em uma investigação repleta de suspeitas.
Esse início funciona porque mantém o espectador em alerta. O mistério em torno de quem seria o incendiário e como ele age é conduzido de forma envolvente, com pistas que parecem apontar para um culpado óbvio, mas sempre deixando a sensação de que as respostas não são tão simples. A promessa é de uma série que equilibraria a investigação criminal com uma análise emocional dos protagonistas, explorando seus traumas e a forma como o fogo os assombra. Nesse ponto, Cortina de Fumaça consegue prender a atenção.
O problema surge quando a narrativa atinge a metade. O que até então era um thriller policial com ritmo bem definido, muda de tom de forma abrupta. A série passa a flertar com o psicológico, mergulhando em distúrbios mentais, jogos de manipulação e até estudos de personagem que parecem deslocados do que vinha sendo construído. Essa guinada não seria necessariamente um defeito se fosse bem orquestrada, mas o que vemos é uma desconexão entre a proposta inicial e o caminho escolhido. Elementos que haviam sido cuidadosamente plantados – como o suspeito inicial, os traumas dos protagonistas e até mesmo o livro escrito por Dave – perdem força e se transformam em meros dispositivos narrativos. É como se a série abandonasse seu próprio alicerce para seguir por outra estrada, sem preparar o público para essa virada.
Essa transição brusca revela um dos grandes problemas da produção: a falta de coesão. O espectador que se envolveu com o suspense investigativo sente-se traído quando percebe que a série não pretende entregar a resolução que vinha sendo prometida. A investigação dá lugar a conflitos psicológicos que, embora interessantes em teoria, não encontram base sólida no que havia sido construído. Essa incoerência gera frustração, porque a sensação é de que todo o investimento nos primeiros episódios foi desperdiçado.
Outro ponto que pesa contra Cortina de Fumaça está na direção. Dennis Lehane reuniu aqui alguns dos mesmos nomes que já haviam trabalhado com ele em Black Bird, mas o resultado não se repete. Se antes a condução era precisa, aqui o excesso de estilização e a falta de consistência acabam prejudicando a narrativa. Há cenas de confronto que soam artificiais, beirando o melodrama, e momentos em que o impacto emocional pretendido não se concretiza porque a encenação parece forçada. O tom irregular contribui para reforçar a ideia de que a série não sabe exatamente o que quer ser.
Apesar dos tropeços, há algo que mantém o interesse: as atuações. Jurnee Smollett confirma mais uma vez sua versatilidade. Mesmo em meio a uma trama confusa, ela entrega intensidade, especialmente quando a série toca nas cicatrizes de sua personagem. Seus momentos de vulnerabilidade são os mais genuínos e lembram ao espectador o potencial que havia no projeto. Já Taron Egerton, mais uma vez, mostra porque é um dos atores mais interessantes de sua geração. Diferente de sua atuação contida em Black Bird, aqui ele assume um tom mais exagerado, quase caricato em alguns momentos, mas ainda assim magnético. Seu desempenho nos leva a acreditar em Dave, mesmo quando o roteiro não oferece as melhores condições para isso.
O grande dilema de Cortina de Fumaça está justamente na contradição entre seu potencial e sua execução. A série parte de uma ideia inovadora, traz um elenco talentoso e tem nas mãos um material de origem instigante. No entanto, falha ao manter a coerência de sua proposta, muda de direção sem convencer e entrega uma experiência monótona, que parece sempre prometer mais do que realmente cumpre. O que poderia ser uma exploração complexa dos efeitos do fogo – físico e emocional – acaba se diluindo em uma trama confusa e em uma transição de gêneros que não funciona.
No fim, a sensação é de desperdício. Cortina de Fumaça tinha tudo para se tornar um dos grandes thrillers do ano, mas se limita a ser apenas mais uma produção esquecível, que frustra justamente por carregar consigo nomes que já haviam provado sua excelência. A Apple TV+ já mostrou ser capaz de entregar obras sofisticadas dentro do gênero, mas aqui, infelizmente, o resultado é um projeto irregular, que fica muito abaixo do esperado.
Se há algo que pode ser salvo, são as atuações, mas nem mesmo o talento de Taron Egerton e Jurnee Smollett consegue apagar a impressão de que estamos diante de uma série perdida entre intenções conflitantes. No fim das contas, Cortina de Fumaça não só falha em cumprir o que prometeu, como dá a sensação de enganar o público, construindo uma expectativa para depois abandoná-la sem justificativa convincente. É, sem dúvida, uma das grandes decepções do ano.