Três anos após o encerramento de Peaky Blinders, Steven Knight retorna às ruas da velha Londres com Mil Golpes, série da Disney+ e Hulu que marca sua volta ao universo de gangues, violência e tensões que tão bem soube retratar no passado. Se em Peaky Blinders o roteirista fez história ao retratar a ascensão de um império criminoso sob o comando de Thomas Shelby, aqui ele mira na trajetória de um jovem boxeador em busca de identidade e espaço em um mundo que insiste em empurrá-lo para a margem. A premissa é promissora, a ambientação é potente, e o elenco impressiona. Mas mesmo com tantos ingredientes de peso, Mil Golpes sofre com decisões narrativas e criativas que comprometem sua força.
A série é protagonizada por Malachi Kirby, ator pouco conhecido do grande público, mas que aqui se impõe com uma performance firme e contida. Ele interpreta Hezekiah Moscow, um jovem negro tentando sobreviver em meio às ruas hostis do East End londrino do início do século 20, enquanto o boxe ganha força como esporte popular. Kirby entrega uma atuação que foge dos exageros e se constrói na contenção, no olhar que segura a raiva e na presença silenciosa de quem precisa resistir mais do que lutar. O racismo estrutural, a marginalização e o senso de pertencimento são elementos que atravessam o personagem, e o ator segura com muita dignidade cada uma dessas camadas.
Ao seu lado, dois nomes chamam a atenção desde o primeiro episódio: Stephen Graham, velho conhecido de Knight em Peaky Blinders, e Erin Doherty, que cresce cada vez mais a cada novo projeto. Graham, com sua fisicalidade intensa, traz força bruta à trama. Doherty, por sua vez, ilumina com uma atuação expressiva e marcante, provando mais uma vez porque é uma das atrizes britânicas mais interessantes da atualidade. A química entre o trio e o elenco de apoio é notável, ainda que alguns personagens soem caricatos demais em determinados momentos. Mas mesmo nesses excessos, o elenco sustenta bem o drama, dando alma a uma narrativa que, em muitos pontos, se sabota.
A ambientação é um dos pontos altos da série. Knight está em casa quando recria o clima sombrio e realista da velha Londres. A sujeira das ruas, a opressão nos becos, a brutalidade nas lutas clandestinas – tudo parece autêntico e carregado de história. A série também mergulha na existência das Forty Elephants, uma famosa gangue feminina da época, oferecendo um contexto histórico rico, ainda que pouco aprofundado. É um universo visualmente potente e que convida o espectador a mergulhar, mesmo quando a narrativa começa a se perder.
E é justamente na condução dessa narrativa que Mil Golpes derrapa. Com apenas seis episódios, a primeira temporada parece ter sido cortada ao meio, como se fosse originalmente planejada para ser mais longa. Ao final do sexto capítulo, a sensação que fica é de uma introdução promissora que é abruptamente interrompida. O arco principal, que se desenha como uma rivalidade entre Hezekiah e o boxeador Henry “Sugar” Goodson, se desfaz quase sem aviso. O que parecia ser o eixo dramático da série simplesmente é deixado de lado, e a promessa de embate se transforma em aliança, sem construção suficiente para justificar a virada. A temporada termina com um teaser da segunda parte — já gravada — e que deve focar mais em vingança e disputas de gangues, deixando o boxe como plano de fundo.
Outro problema é a forma como as lutas são coreografadas e filmadas. O boxe, que deveria ser o espetáculo visual da série, surge sem impacto. Mesmo que as lutas da época fossem menos técnicas, a falta de energia nas coreografias e algumas escolhas de câmera prejudicam a imersão. A tensão dos confrontos, essencial para que o público se envolva, se esvazia em cenas que carecem de ritmo e impacto. Há esforço estético, mas falta fúria — algo que Peaky Blinders tinha de sobra.
Apesar de todos esses tropeços, Mil Golpes está longe de ser uma série dispensável. Há consistência temática, há personagens interessantes, há espaço para desenvolvimento — e principalmente, há um universo rico a ser explorado. O problema é que a primeira temporada parece ter se contentado em preparar o terreno sem plantar o suficiente. Quando os créditos finais sobem, fica a expectativa pela próxima fase, mas também uma frustração com o que poderia ter sido. Steven Knight ainda conhece muito bem esse cenário, mas aqui parece ter optado por manter o freio de mão puxado, talvez apostando demais no que está por vir.