A Netflix continua sua jornada de adaptar franquias consagradas dos videogames em animações, e Splinter Cell: Deathwatch chega para tentar repetir o sucesso de outras produções do gênero, como Tomb Raider: A Lenda de Lara Croft. A diferença é que, aqui, quem assume o comando é Derek Kolstad, criador da franquia John Wick, responsável por construir um universo de ação estilizada e que vem servindo como referência para os filmes recentes do gênero. A expectativa, portanto, era alta — afinal, Kolstad parecia a escolha perfeita para traduzir o mundo de espionagem e sombras de Splinter Cell em um novo formato. Mas o resultado, apesar de ter estilo, carece de substância.
Desde os primeiros minutos, dá para perceber que Kolstad tenta equilibrar duas intenções: homenagear os fãs dos jogos e apresentar algo acessível a um público novo. A série é apresentada como uma espécie de continuação dos jogos, com um Sam Fisher envelhecido e aposentado que precisa voltar à ativa quando uma jovem agente é ferido e pede sua ajuda. A premissa carrega um bom potencial dramático — a ideia de um espião veterano, marcado pelo tempo e pela culpa, tendo de encarar o passado —, mas o roteiro parece pouco interessado em explorar esse lado humano. Em vez disso, prefere seguir uma narrativa genérica, repleta de flashbacks que mais dilui a narrativa do que ajudam a entender o protagonista.
Kolstad declarou que a intenção era criar algo que se conectasse ao universo dos jogos, mas com liberdade criativa para expandir o enredo. Essa liberdade, porém, acaba se tornando um obstáculo. Embora o nome “Sam Fisher” e a organização “Fourth Echelon” estejam presentes, pouco do verdadeiro espírito de Splinter Cell sobrevive aqui. A série ignora o elemento tático e furtivo, o famoso modo stealth, marca registrada da franquia, e substitui o suspense silencioso por combates diretos, explosões e lutas corpo a corpo — tudo muito bem animado, é verdade, mas sem a tensão e o refinamento que definem o personagem nos games. É como se a produção usasse o título apenas como uma fachada para uma história de ação genérica.
E essa é talvez a maior contradição da série: ela quer ser uma expansão do universo dos jogos, mas faz questão de fugir de tudo que tornou a franquia especial. A Ubisoft deu carta branca para Kolstad criar algo novo, desde que respeitasse a mitologia original — e ele até tenta, inserindo referências, fan services e citações que farão os fãs mais atentos sorrirem. Mas isso não basta. A mitologia está presente, sim, mas de maneira superficial, quase como um verniz que encobre um enredo que poderia pertencer a qualquer outra série de espionagem.
Liev Schreiber empresta uma voz rouca e imponente a Sam Fisher, dando ao personagem a gravidade necessária para um veterano de guerra que carrega o peso de muitas missões. Ainda assim, a série não sabe o que fazer com ele. Sam é retratado como um homem de poucas palavras, frio e contido — uma característica coerente com sua trajetória, mas que, aqui, acaba se tornando um obstáculo narrativo. Falta profundidade emocional. O protagonista parece deslocado dentro da própria história, um símbolo do passado empurrado para o canto enquanto novos personagens tentam roubar a cena.
Entre esses novos rostos está Zinnia McKenna, dublada por Kirby Howell-Baptiste, que surge como uma espécie de contraponto a Sam: jovem, impulsiva e movida por ideais. A intenção de criar um elo de gerações é clara, mas a execução deixa a desejar. Zinnia nunca chega a ter a força ou o carisma suficientes para sustentar o protagonismo que a série tenta lhe atribuir. Com isso, o foco se divide entre duas figuras que não se complementam de verdade — Sam, preso ao passado, e Zinnia, sem profundidade no presente. O resultado é um desequilíbrio narrativo que enfraquece ambos.
Em termos visuais, Splinter Cell: Deathwatch segue a linha das recentes animações da Netflix. O traço é limpo, moderno, que remete a produções como a série animada da Lara Croft. É um estilo que certamente agrada quem gosta de uma estética mais estilizada, mas que pode não conquistar todos os espectadores. Ainda assim, é preciso reconhecer o trabalho técnico nas cenas de ação, que são o ponto alto da série. As lutas são intensas e bem coreografadas, demonstrando o talento da equipe de animação em capturar o impacto físico e a brutalidade dos combates. O problema é que, mesmo visualmente empolgantes, essas sequências não têm o mesmo peso narrativo que deveriam. Falta a sensação de propósito que existia nos jogos, onde cada movimento era calculado e cada sombra tinha importância.
Essa mudança de tom deixa claro que a série quer se aproximar de um público mais amplo, menos familiarizado com os jogos, e mais interessado em uma história de ação direta. O problema é que, ao tentar agradar a todos, acaba não agradando plenamente ninguém. Os fãs se sentirão traídos pela superficialidade com que o universo foi tratado; os novatos, por sua vez, encontrarão uma história competente, mas esquecível. É o típico caso de uma obra que tem todos os ingredientes certos, mas não sabe como misturá-los.
Splinter Cell: Deathwatch deixa uma sensação agridoce. Há momentos em que o potencial da franquia brilha, especialmente quando Sam Fisher entra em ação — seja escalando estruturas, usando seu icônico visor de visão noturna ou demonstrando a astúcia que o consagrou. São instantes que resgatam o que há de melhor no personagem e mostram o quanto a série poderia ter sido mais envolvente se tivesse confiado mais em suas origens. No entanto, esses lampejos são raros, e logo se perdem em meio a tramas genéricas e vilões sem carisma.
Derek Kolstad, com toda sua experiência em construir mundos violentos e elegantes, parece ter preferido apostar na forma em vez do conteúdo. O estilo de John Wick está ali — os combates fluidos, o foco no corpo em movimento, a atmosfera sombria — mas sem a densidade emocional que sustentava aquele universo. Splinter Cell sempre foi sobre o silêncio, a paciência e a inteligência estratégica. E, ironicamente, é justamente isso que a série esquece de trazer.
No fim das contas, Splinter Cell: Deathwatch é uma produção que tem bons momentos visuais e uma dublagem eficiente, mas que falha ao traduzir a alma da franquia. Funciona como entretenimento leve e rápido, mas decepciona quem esperava uma verdadeira expansão do legado de Sam Fisher. O público novo pode até se divertir com as sequências de ação, mas os fãs dos jogos certamente sairão com a sensação de que viram um grande potencial desperdiçado.
Não era preciso reinventar o personagem nem transformar a série em algo tão distante de suas origens. Bastava lembrar que, às vezes, o verdadeiro poder de Sam Fisher não está nas explosões nem nos tiros — mas no silêncio e na sombra. E é exatamente isso que Deathwatch esquece de honrar.