Quando você fala de Spike Lee, a expectativa já vem pronta. Não importa se você gosta ou não da sua filmografia, é impossível ignorar o impacto de um cineasta que construiu sua carreira questionando, provocando e, acima de tudo, entregando obras que respiram identidade. E essa expectativa cresce ainda mais quando ele chama Denzel Washington, um dos maiores atores de todos os tempos, para mais uma parceria. Desde Mais e Melhores Blues (1990), a química entre os dois sempre resultou em algo marcante. Por isso, quando Luta de Classes estreou em Cannes e depois chegou ao catálogo da Apple TV+, a sensação era de que teríamos um filme pronto para ser debatido, comentado e celebrado. Mas não foi isso que aconteceu. O longa passou praticamente despercebido e caiu rápido no esquecimento. Infelizmente, isso já dizia muito sobre o que estava por vir.
Spike Lee parte de uma base promissora. Ele revisita High and Low (1963), de Akira Kurosawa, além do livro King’s Ransom, de Ed McBain, mas apenas como ponto de partida. A ideia de explorar desigualdade e luta de classes em uma Nova York pulsante, moldada pela música e pela estética urbana, é, sem dúvida, a cara de Lee. O problema é que essa premissa nunca encontra a solidez necessária. O filme tem estilo, transborda identidade visual e traz aquela energia que só Spike sabe imprimir, mas tudo isso é usado de maneira dispersa.
O maior exemplo disso está no uso da música. Lee sempre foi um diretor que fez da trilha sonora uma extensão da narrativa, e aqui não poderia ser diferente. O rap surge como linguagem, identidade e até como combustível para conflitos. O diretor chega a ousar em sequências como uma discussão em formato de batalha de rimas improvisada entre David King (Denzel Washington) e Yung Felon (A$AP Rocky), um momento que traduz bem a mistura entre arte e tensão social. Mas, no geral, a música acaba funcionando mais como acessório do que como motor narrativo. Ela está presente, reforça a assinatura do cineasta, mas não alcança o potencial de ser um fio condutor. É como se a obra quisesse usar o rap para se diferenciar, mas nunca tivesse coragem de levá-lo até as últimas consequências.
Essa limitação se conecta diretamente com o roteiro de Alan Fox. Ao adaptar a trama de Kurosawa e McBain, ele insere reflexões sobre desigualdade racial e social, dilemas morais e relações de poder. Porém, todas essas ideias aparecem de forma fragmentada. Luta de Classes até levanta as discussões certas, mas parece fugir do aprofundamento como se tivesse medo de se tornar pesado demais. O resultado é um filme que toca em muitos temas sem realmente mergulhar em nenhum deles. A cada vez que o espectador acredita que a trama vai ganhar força, ela é interrompida por desvios de tom: ora o sequestro é o centro da história, ora a música domina a narrativa, ora os diálogos apontam para debates raciais. Essa oscilação compromete a coesão e enfraquece o impacto.
E aqui está uma das maiores contradições da obra. Spike Lee é conhecido justamente por não ter medo de ser denso, incômodo ou provocativo. É isso que fez de filmes como Faça a Coisa Certa e Infiltrado na Klan referências tão fortes. Mas em Luta de Classes, o diretor parece recuar. Ele flerta com a crítica social, mas nunca a encara de frente. Prefere espalhar ideias em vez de concentrá-las em uma linha de raciocínio sólida. A sensação é que o filme se perde na própria ambição: quer ser denúncia social, quer ser musical, quer ser thriller, mas nunca escolhe de fato o que quer ser.
Esse desequilíbrio afeta também os personagens. David King, vivido por Denzel Washington, é um homem negro que conquistou espaço e sucesso, mas enfrenta dilemas morais com seu empregado Paul Christopher (Jeffrey Wright) e com o jovem Yung Felon. É através dessas relações que o filme poderia explorar de forma mais intensa a desigualdade e as tensões de classe. No entanto, o roteiro não lhes dá a devida profundidade. Denzel, com seu talento inquestionável, entrega intensidade nos monólogos e firmeza nas discussões, mas até mesmo ele parece limitado pelo material que tem em mãos. Seu personagem, por mais magnético que seja, soa deslocado em uma trama que não sabe muito bem para onde vai. Jeffrey Wright, um ator que sempre imprime presença em cena, começa com destaque, mas logo é deixado de lado. E A$AP Rocky, embora traga energia crua para o papel, não consegue sustentar o peso dramático necessário.
No fim, o que fica é a frustração. Luta de Classes tinha tudo para ser uma das grandes obras da parceria entre Spike Lee e Denzel Washington. Tinha a premissa perfeita para provocar debates e a assinatura de um diretor que nunca se esquivou das questões sociais. Mas o que se vê é um filme que prefere arranhar a superfície em vez de mergulhar. Um filme que promete muito mais do que entrega, que confunde estilo com profundidade e que, ao diluir seus focos, acaba se tornando esquecível.
Não se trata de um fracasso absoluto — há boas cenas, monólogos inspirados e momentos de direção que só Spike Lee seria capaz de construir. Mas, diante das expectativas que cercavam essa parceria, é impossível não considerar Luta de Classes uma das experiências mais decepcionantes da carreira de ambos. O que deveria ser, no mínimo, um filme marcante, acaba se tornando exatamente aquilo que aconteceu após sua estreia: esquecido.