Há filmes que não precisam de grandes reviravoltas para comover. Totto-Chan: A Menina na Janela é um desses. Dirigido por Shinnosuke Yakuwa, o longa-metragem de animação adapta a célebre autobiografia de Tetsuko Kuroyanagi com um olhar sensível sobre a infância, a liberdade e o impacto silencioso da guerra.
Mais do que uma história sobre uma menina curiosa, o filme é um convite para enxergar o mundo pela janela de Totto-Chan — uma criança que não se encaixa nos padrões e que encontra, na singularidade de sua nova escola, um espaço para florescer.
A trama acompanha Totto-Chan, uma garota de sete anos expulsa da escola por seu comportamento inquieto e imaginativo. Em vez de ser reprimida, ela é acolhida pela Tomoe Gakuen, uma instituição de ensino alternativa que acredita no poder da curiosidade e da autonomia. É ali que Totto descobre o valor da empatia e constrói laços profundos, especialmente com Yasuaki, um garoto com poliomielite que, apesar da timidez, encontra nela um olhar de aceitação e amizade.
Logo nos primeiros minutos, o filme deixa claro que não pretende seguir o ritmo frenético das animações comerciais. Shinnosuke Yakuwa aposta em um tom contemplativo, que reflete a inocência infantil e o cotidiano simples das crianças. A primeira hora do longa se dedica quase inteiramente a mostrar o dia a dia na escola — as aulas de música, os passeios, os momentos de imaginação.
À primeira vista, pode parecer pouco para quem espera grandes acontecimentos, mas é justamente nessa calma que o filme encontra sua força: nas pequenas descobertas, nos gestos de afeto e nas trocas silenciosas entre as crianças.
O roteiro, assinado por Yakuwa e Yôsuke Suzuki, constrói essa simplicidade com delicadeza. A história não tem pressa, e isso pode afastar espectadores acostumados a narrativas mais diretas. No entanto, quem se permite mergulhar nesse ritmo encontra uma das experiências mais emocionais e honestas do ano.
A relação entre Totto-Chan e Yasuaki é o coração do filme — um vínculo puro, livre de preconceitos e moldado pela empatia. A amizade entre os dois não apenas dá vida ao enredo, como reforça a mensagem de que a inclusão e o respeito são aprendizados que nascem na infância.
Ao mesmo tempo, o filme não ignora o contexto histórico em que está inserido. A Segunda Guerra Mundial paira sobre o Japão como uma sombra constante, ainda que raramente seja mostrada de forma explícita. Essa decisão é proposital — Yakuwa opta por enxergar o conflito pelos olhos das crianças, que não compreendem o horror em sua totalidade, mas sentem seus reflexos no cotidiano.
A guerra surge em gestos simples: nas restrições impostas à sociedade, na mudança das roupas coloridas para tons sóbrios, nas proibições que retiram das crianças o direito de cantar ou brincar livremente. Quando essas limitações tomam conta da narrativa, a animação muda junto: as cores vibrantes cedem lugar ao cinza e à chuva, simbolizando a perda da alegria e da inocência.
É um recurso visual poderoso, que traduz a opressão sem precisar de discursos ou cenas explícitas de violência.
Ainda assim, Totto-Chan e Yasuaki encontram maneiras de resistir. A cena em que, mesmo proibidos, eles brincam na chuva, é uma das mais bonitas e simbólicas do filme. Nela, o gesto simples de desobedecer se transforma em um ato de liberdade — uma metáfora delicada sobre a pureza da infância diante de um mundo que tenta controlá-la.
Outro destaque está na animação 2D, um estilo que tem se tornado cada vez mais raro nos grandes estúdios, mas que aqui ganha novo fôlego. O traço é suave, com cores pastéis e texturas que evocam a estética tradicional japonesa.
Há momentos em que a narrativa se permite sonhar, e o filme abraça pequenas sequências de fantasia — como se desse forma às imaginações das crianças. Essas passagens funcionam como respiros dentro do ritmo mais sereno, reforçando o encanto e a sensibilidade da obra.
A trilha sonora acompanha esse mesmo tom: discreta, melódica, quase sempre conduzindo a emoção sem chamá-la para o primeiro plano.
Apesar da sutileza ser o grande trunfo da animação, ela também pode ser vista como um desafio. A falta de uma estrutura narrativa mais tradicional, com clímax e resolução marcados, pode dar a sensação de que “pouco acontece”. Mas essa é justamente a proposta de Totto-Chan: A Menina na Janela: ser um retrato da infância em seu estado mais puro, onde os momentos aparentemente banais são, na verdade, os mais reveladores.
Em vez de grandes eventos, o filme aposta em sensações — o som da chuva, o calor da amizade, o olhar curioso de uma menina que tenta entender o mundo.
É possível perceber, também, como a obra equilibra ternura e melancolia. Há leveza em cada risada de Totto, mas há também um peso invisível no ar — um presságio de que aquele tempo de inocência está prestes a desaparecer. Essa dualidade dá profundidade à narrativa e impede que o filme caia em sentimentalismo fácil.
Ao contrário, ele emociona justamente por não forçar a emoção: o espectador sente junto, de forma natural, sem precisar ser conduzido por diálogos explicativos.
Se há um ponto que pode ser apontado como fragilidade, é o ritmo, que às vezes se estende mais do que o necessário. Com quase duas horas de duração, Totto-Chan exige paciência — mas recompensa quem a oferece. Cada cena, mesmo as mais simples, carrega um propósito, e o desfecho chega com a força de algo genuíno, não de uma manipulação emocional.
Em seu conjunto, Totto-Chan: A Menina na Janela é uma das animações mais tocantes e sofisticadas de 2025.
Não pela grandiosidade, mas pela coragem de ser pequena, silenciosa e humana. É um filme sobre ver e ser visto, sobre encontrar acolhimento em um mundo que tenta enquadrar o diferente.
Yakuwa entrega uma obra de delicadeza rara — um lembrete de que, às vezes, o que há de mais poderoso está justamente naquilo que parece simples.