Coringa: Delírio a Dois (Joker: Folie à Deux) 2024
"Coringa 2" é dirigido por Todd Phillips a partir de um roteiro que ele coescreveu com Scott Silver. Baseado em personagens da DC Comics, o longa-metragem é uma sequência direta de "Coringa" (2019). Joaquin Phoenix repete seu papel como Arthur Fleck/Coringa, e dessa vez ele conta com a presença de Lady Gaga como Harleen "Lee" Quinzel, seu interesse amoroso. "Coringa 2" traz um Arthur Fleck que no momento está internado em Arkham, aguardando julgamento por seus crimes como o Coringa, anteriormente. Ele continua com sua guerra pessoal ao ter que lidar com sua dupla identidade, quando se depara com o amor e encontra a música que sempre esteve dentro de si.
Em 2019 "Coringa" foi uma aposta da Warner, visto que o estúdio apostava em contar o princípio e o desenvolvimento de um vilão. Vilão este que geralmente sempre esteve ligado ao Batman, e aí que surge a pergunta: o Coringa pode existir sem o Batman? Dessa forma precisou de todo um estudo de personagem, contando com toda uma liberdade criativa, uma licença poética, para assim o personagem se desligar de outros personagens e criar a sua própria identidade e consequentemente o seu próprio universo. Tanto é que o longa traz uma verdadeira revolução dentro do universo cinematográfico do Coringa que já conhecemos, pois de fato o filme não tem ligações com as outras versões do personagem vistas anteriormente no cinema.
Dito isto, "Coringa" foi um verdadeiro marco na história das adaptações de HQ's para o cinema. Isso também se deu nas bilheterias, pois o orçamento do filme foi de US\$ 65 milhões e a bilheteria mundial ultrapassou US\$ 1 bilhão. Nos festivais de premiações, "Coringa" ganhou o Leão de Ouro no 76º Festival Internacional de Cinema de Veneza. No Oscar 2020, "Coringa" liderou com 11 indicações, vencendo em Melhor Ator para Joaquin Phoenix e Melhor Trilha Sonora para Hildur Guðnadóttir.
Todo o sucesso de críticas do "Coringa" se deu justamente por ser um filme fora dos padrões das adaptações de HQ's. Pois o filme é cru, seco, niilista, intrínseco, peculiar, pertinente, que nos relata como uma sociedade decadente tem o poder de causar distúrbios mentais em uma pessoa e transformá-la em um vilão, ou em uma vítima. Posso ir ainda mais além ao destacar como o longa consegue capturar o espírito daquele momento da cidade e do governo em Gotham City, o que canaliza muitas frustrações e retrata uma sociedade fria, repleta de instituições decadentes, mantidas por um fio, que empurram Arthur Fleck para a insanidade e consequentemente para a violência.
Verdadeiramente "Coringa" fez um sucesso estrondoso e teve todos os méritos possíveis para isto, se consolidando como o melhor filme da DC/Warner. Eu coloco "Coringa" na prateleira das melhores adaptações de HQ's de todos os tempos, juntamente com obras como "Homem Aranha 2", "Batman: O Cavaleiro das Trevas" e "Vingadores: Ultimato". E digo mais: "Coringa" deveria ter levado o Oscar de Melhor Filme em 2020. Eu gosto de "Parasita", é de fato excelente e traz abordagens ácidas e pertinentes como um todo, mas "Coringa" é mais imponente e se destaca como uma uma obra-prima revolucionária e categórica.
Diante de todos os fatos apresentados por "Coringa" lá em 2019, seria mais do natural que o estúdio apostasse em uma continuação, até pela bilheteria que o longa fez. Sendo assim o sarrafo subiu demais, às exceptivas do público subiram demais. Desde que foi anunciado oficialmente, "Coringa 2" causou um alvoroço se destacando como uma das sequências mais aguardadas da atualidade cinematográfica. E não era pra menos, visto que praticamente todos do filme anterior estariam de volta, isso incluindo o diretor Todd Phillips, o roteirista Scott Silver, o diretor de fotografia Lawrence Sher, o compositor Hildur Guðnadóttir, além, é claro, o monstruoso Joaquin Phoenix e a melhor e mais completa artista da atualidade, Lady Gaga. Ou seja, toda a receita para um novo sucesso estava pronta, era só fazer acontecer. Porém, não foi bem isso que aconteceu.
Para início de conversa, "Coringa 2" foi concebido como um filme independente, embora a própria Warner Bros. pretendesse que o filme lançasse uma nova série de filmes, algo como uma nova franquia de filmes com tons mais sombrios, que seria desenvolvido como a "DC Black". "Coringa 2" está sendo duramente criticado pelo público e pela crítica especializada, algo como uma não conexão com o público que foi algo imediato conquistado pelo filme anterior. O longa está sendo um verdadeiro fracasso nas bilheterias, já que seu orçamento esteve com custos de US$ 200 milhões e ele fez apenas US$ 40 milhões nos Estados Unidos, menos da metade do valor arrecadado em 2019 com o primeiro filme. Isso tem deixado a Warner extremante preocupada.
Como eu adoro o primeiro filme e o considero como uma verdadeira obra-prima do cinema, devo admitir que eu tinha uma grande expectativa com a realização dessa continuação. Porém: fiquei decepcionado como a grande parte do público? Sim e não (confuso? Eu sei! - rsrsrs). Para começar eu gostei do filme, não era exatamente o que eu estava esperando, mas também não é todo esse desastre que a crítica aponta. Porém, eu entendo grande parte das críticas, pois o diretor foi ousado demais em sua decisão, ele foi além do simples, além da sua zona de conforto, que seria entregar o básico que deu tanto certo no primeiro filme. Acredito que o Todd Phillips quis se desafiar e não quis jogar na segurança, que seria fazer o simples bem feito.
O primeiro "Coringa" ganhou uma enorme notoriedade e se destacou justamente pela forma como ele foi desenvolvido e entregado, sendo aquela representação de uma personalidade com uma mente deturpada e doentia que foi de certa forma corrompida pela sociedade e por traumas em seu passado, o que justamente desencadeou na transformação do Arthur Fleck no Coringa. Então, o que o público poderia de fato esperar de uma provável (ou improvável) continuação? Talvez a crítica fique pela a sequência que o roteiro decidiu seguir? Se passando grande parte com o julgamento pelos crimes cometidos pelo Arthur enquanto o Coringa. E aqui eu até acho que o roteiro força bastante nesse tema, o tribunal, e deixa grande parte do potencial do próprio Coringa de fora, Uma vez que às cenas do julgamento se torna um pouco morna demais e o Arthur transformado no Coringa fique mais à cargo da sua imaginação.
Por outro lado eu acredito que o que de fato pegou o público foi o tom empregado pelo próprio Todd Phillips em seu longa, que verdadeiramente podemos chamá-lo de suspense musical. Apesar do próprio Todd não considerar o seu filme como um musical, temos sim uma película musical no fim das contas. E nesse ponto pode entrar o preconceito do público com musicais (especificamente falando do público brasileiro). Os americanos amam musicais e não é à toa que tivemos "La La Land" (2017) ganhando o Oscar de Melhor Filme. Mas será que realmente era necessário um musical em "Coringa 2"?
Para falar dessa parte musical do filme eu preciso puxar o gancho da Lady Gaga, que pra mim é o principal estopim para despertar a faísca de Arthur Fleck para voltar ao Coringa. Gaga dá vida à Lee, uma paciente do Arkham State Hospital que fica obcecada por Arthur e forma um relacionamento romântico mortal com ele. Lee é manipuladora, persuasiva, invasiva, maquiavélica, contraditória e bastante letal. Ela é a responsável em manipular o Arthur o tempo todo, conseguindo mexer com sua mente e seu corpo, despertando seus sentimentos e desejos mais obscuros. Definitivamente Lee é um estudo de contradições, partindo do princípio que seu amor e sua obsessão pelo Arthur também são admiração e desgosto. A partir desse ponto Lee desperta a música dentro da alma do Arthur, o que de certa forma era algo que ele próprio desconhecia, ou não tinha total controle. É uma narrativa que navega diretamente no suspense, no drama, no psicológico, usando a música como uma válvula de escape para uma verdadeira loucura.
Acredito que a decisão do Todd Phillips em cenas musicais foi uma cartada justamente à loucura dos dois personagens em cena. Tanto que às partes musicais são apresentadas em um tom especificamente de delírios, alucinações, devaneios, fantasias, algo como uma fuga, um grito da alma. Por isso eu reitero que o diretor foi extremamente corajoso e ousado, em querer despertar estes sentimentos no público, indo por um caminho mais teatral e mais poético ao abordar um lado sombrio e obscuro, em mentes completamente fragmentadas.
Porém, foi uma decisão ousada e corajosa do diretor mas extremamente perigosa com a recepção do público. Pois grande parte das pessoas estavam esperando uma continuação mais objetiva do que superficial. Eu já tive muito preconceito com musicais, já virei a cara para vários filmes musicais, mas este foi um erro que eu concertei e hoje eu adoro musicais, claro que filtro alguns casos. Dessa forma eu não tenho nenhuma dificuldade com musicais, pelo contrário, é muito satisfatório assistir um belo musical - que é o caso de "Coringa 2", por que não? Mas o grande público não compactua da mesma opinião que a minha, sendo assim é normal que o público julgue o filme como monótono, arrastado e até superficial. Pode parecer uma ótima ideia a construção de um musical sombrio com o Coringa e a Harleen com um pano de fundo de violência, fantasia, alucinações e delírios. Porém, o sentimento que fica é de que tudo foi subaproveitado como um todo, uma vez que grande parte da trama se passa em um tribunal. Dessa forma é normal sentir a falta daquela energia carregada, perigosa e do caos do primeiro filme.
Outro ponto que pode gerar discursão é justamente o ponto que o roteiro levanta ao tentar desmistificar a ideia de que o Coringa é um personagem divertido, indo até naquela linha dos policiais sempre pedirem para o Arthur contar uma nova piada, que foi algo que ficou no ar durante todo o filme até a última cena exatamente na prisão - por sinal uma cena impactante! A própria Lee representa a imagem do pior dos fãs, que é caracterizado como aquele que quer que seu ídolo nunca saia do personagem, e finge desesperadamente ser algo que não é, como se isso fosse realmente bom ou necessário. Tradicionalmente podemos considerar que o Coringa que seduz a Harley Quinn para que ela se torne parte dele, já aqui este papel é invertido, uma vez que a Lee usa a própria mente do Coringa contra ele próprio.
Outro ponto bastante questionável é o fato do filme querer pregar uma desconstrução e descaracterização do Coringa. Como se desmontasse o mito de que o Coringa representa algo além da violência crua e desenfreada. Grande parte do roteiro tenta desesperadamente abordar o fato de que o Coringa é uma identidade/personalidade diferente do Arthur, como o próprio discurso de defesa apresentado no tribunal durante seu julgamento. Até dá pra considerar uma ideia sobre a possível desconstrução do personagem, mas a execução deixa muito a desejar.
Joaquin Phoenix novamente em uma atuação excelente, com uma entrega no personagem absurda. Tanto que na primeira cena você imediatamente já nota o quanto ele está magro, chega a ser pavoroso. Phoenix novamente nos entrega o seu Coringa sombrio, obscuro e mórbido em um nível de facetas impressionante.
Já a Gaga é o contraponto ideal de Phoenix na trama, algo como um complemento ao seu personagem, e devo dizer que ela entrega uma atuação bastante condizente com a proposta da sua personagem. Gaga consegue passar aquela personalidade manipuladora, dominante e letal. Ela realmente tem essa veia para personagens mais desafiadores. Porém, eu acho que faltou um algo a mais em sua personagem, não sei se foi o tempo dela, talvez o desenvolvimento, talvez as suas canções que não foram tão memoráveis, mas eu fiquei com a sensação de um baita talento em até certo ponto desperdiçado.
Harry Lawtey foi uma figura bastante interessante e intrigante com o seu promotor público assistente que planeja levar Arthur à justiça por seus crimes. Eu diria que foi uma participação bastante curiosa do Harvey Dent.
Tecnicamente temos vários pontos que merecem um destaque.
Novamente a direção do Todd Phillips é acertada e condiz perfeitamente com toda sua ousadia e coragem. A trilha sonora de Hildur Guðnadóttir é excelente, assim como já havia sido no primeiro filme. Curioso que a trilha sonora do filme inclui 16 números musicais, a maioria deles covers de músicas pré-existentes, com uma música original escrita por Lady Gaga. Ela lançou um "álbum complementar", Harlequin, em 27 de setembro de 2024. A fotografia navega na mesma temática de decadência do filme anterior, o que transcende cada cena do filme, seja ela no tribunal, na penitenciária, ou até mesmo nas ruas. A direção de arte é um show à parte. É impressionante como a direção de arte consegue se encaixar perfeitamente dentro do padrão e da proposta do filme. Sem falar na montagem, edição, mixagem, figurinos e maquiagens, tudo minunciosamente muito bem estruturado. Tecnicamente e artisticamente o longa de Todd Phillips é novamente uma obra-prima!
Por fim: "Coringa 2" se encaixa perfeitamente naquele padrão do ame ou odeie. Infelizmente eu tenho que admitir que o filme não agrega em nada na história já traçada, não consegue caminhar com as próprias pernas e vive o tempo todo na sombra do anterior. Sendo assim eu também considero esta continuação como desnecessária, já que o primeiro filme é efetivamente autossuficiente em tudo que se propôs.
Eu confesso que tinha uma outra ideia sobre o filme, e de fato ele fugiu bastante das minhas expectativas. Porém, no entanto e todavia, eu reitero que gostei do filme, não o considero como esta bomba toda que todos estão considerando. Pelo contrário, eu ainda consigo enxergar uma abordagem sobre uma mente fragmentada, deturpada, distorcida, uma manifestação de uma doença mental em seu estado mais alterado e doentio. "Coringa 2" é ousado, corajoso, meticuloso, diferente, que entrega o discurso que ele quer contar e não necessariamente o que o público idealiza e almeja, mesmo que pra isso soe como uma obra que se apegue mais ao excêntrico, ao extravagante, exibindo o seu lado mais teatral e poético.
- 23/12/2024