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    O Preço de Tudo
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    O Preço de Tudo

    A chacota que move o mundo

    por Taiani Mendes

    Fosse a HBO esperta, teria lançado O Preço de Tudo - documentário cujos direitos adquiriu no Festival de Sundance - assim que Banksy pregou a peça do ano destruindo a famosa Girl with Balloon assim que foi leiloada por mais de US$ 1,3 milhão. O choque dos presentes, o desespero dos funcionários da Sotheby’s, a engenhosidade do artista de instalar um dispositivo de autodestruição no quadro, o fato da obra ser originalmente um mural (o que faz de tal versão uma cópia), e a execução do ato justamente numa quase quebra de recorde de valor das obras de Banksy têm tudo a ver com o filme de Nathaniel Kahn, de tal forma que a rebeldia poderia perfeitamente ser desvendada um dia desses como uma arrojada ação de divulgação do mesmo.

    Teorias da conspiração à parte, Nathaniel merece palmas pelo excelente timing. Mercadoria vs. arte é uma briga que não vem de hoje e tampouco os leilões milionários começaram ontem, porém a eleição do controverso Donald Trump nos Estados Unidos mostrou potencial para fazer ferver os dois protagonistas dessa complicada história de amor e ódio: a economia, forte do empresário; e a arte, sempre intensificada em momentos de crise política. Como é, então, essa relação entre arte e dinheiro? Essa é a investigação que coloca o cineasta em contato com artistas, colecionadores, historiadores, críticos e marchands, interessado em conhecer o ponto de vista de cada agente e oferecer ao espectador uma espécie de panorama do mercado artístico neste início de século, definindo seus players e respectivas "filosofias".

    Exuberante, frenético e pretensamente plural como as feiras de arte que simbolizam como nenhuma outra coisa o frenesi da comercialização do imensurável - registradas por Kahn e pelo fotógrafo Robert Richman como um verdadeiro circo representante da ridicularização da humanidade -, O Preço de Tudo não aspira elaborações dignas de "cinema de arte" e polariza a narrativa com dois artistas que poderiam ocupar os postos de herói e vilão se essa fosse uma história simples, com começo, meio e fim.

    Os nomes são parecidos e todo o resto não poderia ser mais diferente. O pintor abstrato Larry Poons nasceu no Japão e é um surdo velhinho motoqueiro que circula em roupas modestas e passa a maior parte do tempo sujo de tinta trabalhando em seu íntimo estúdio, onde tudo é área a ser pintada. É considerado recluso e suas obras valiosas ficaram no passado. Jeff Koons vendia ações como O Lobo de Wall Street antes de virar artista e comanda uma enorme equipe que reproduz seus conceitos em escala industrial. Não toca em nada, apenas idealiza e explica, e a obra mais cara já vendida de um artista vivo é sua: US$ 58 milhões por Ballon Dog (Orange). Como os dois existem inúmeros e a partir dessa oposição Kahn busca explicações para o fato da arte de um valer tanto e do outro não mais. Koons e Poons falam sobre si, enquanto a análise da situação cabe aos que realmente mandam no jogo, quem vende e quem compra. A graça aqui é se surpreender, se divertir e (por que não?) aprender com os discursos dos colecionadores e negociantes, às vezes extremamente bipolares entre a racionalidade financeira e a pura sensibilidade.

    O Preço de Tudo tem a vantagem de um tema vasto, que permite a breve abordagem de incontáveis questões (racismo, sexismo, capitalismo, institucionalização, estética, poder e por aí vai...), porém talvez não funcionasse tão bem se a escolha dos personagens não fosse tão incrível. O colecionador judeu Stefan Edlis e Amy Cappellazzo, presidente da divisão de Belas Artes da Sotheby's, são não apenas protagonistas do jogo do dinheiro, como figuras extremamente falantes, hipnotizantes e cheias de informação para dar. Acompanhar a correria de Amy e descobrir pouco a pouco a coleção de Stefan são privilégios que fazem deste documentário uma experiência inebriante, e existem ainda todas as reflexões de diferentes artistas sobre a relação com o mercado, as frases sensacionais dos críticos e o lamento dos historiadores da arte. O que faz falta no filme é uma voz dos museus, que permanecem inacessíveis como "lugar dos sonhos" dos artistas e "cemitério da arte" na visão de Amy e Stefan. Seria interessante também ouvir alguém fora do eixo Nova York X Londres, afinal o presente e o futuro estão nas mãos dos novos investidores que não estão nos velhos centros.

    Irônico, Kahn sabe que não há mistério algum na conexão entre arte e dinheiro e finge inocência para circular pelos salões fechados desse universo em que nada parece fazer sentido, no entanto faz. Muito. De certa forma grandes debates estão representados neste microcosmo da sociedade condenada ao capitalismo - a apropriação, no caso envolvendo a relação do artista com o comprador; a confusão com artefatos, agora substituída pela confusão com produtos; os limites e a própria definição do que é a tão falada arte -, porém O Preço de Tudo não busca se engajar em discussões, mas sim oferecer uma observação do sistema, uma visita guiada à engrenagem que é mais ou menos assim desde que o dinheiro e a valoração entraram no mundo. É assustador, insano e incômodo como um leilão moderno, mas funciona.

    Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.

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