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    Através
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Através

    O filme antes do fim

    por Bruno Carmelo

    Existem dois filmes muito diferentes dentro de Através. O primeiro deles dura cerca de 1h20, e retrata a errância da jovem cubana Cintia Paredes dentro de seu país. Estamos em 2012, e uma nova lei de Raul Castro permite aos cubanos sair do país sem permissão do governo. A jovem garota faz uma rápida visita aos avós, do outro lado da ilha, enquanto pensa em se mudar para Miami, onde vive o namorado.

    Estes três quartos da narrativa constituem um trabalho impressionante dos jovens diretores André Michiles, Fábio Bardella e Diogo Martins. Combinando elementos do documentário e da ficção, eles seguem sua personagem principal com uma câmera livre, atenta, mas nunca próxima demais ao rosto: os cineastas estão preocupados acima de tudo com a inserção do corpo no espaço, de modo que Cintia é vista compondo quadros em belas paisagens cubanas. Ela é um sujeito em andamento, uma mulher em deslocamento livre pelo país, por não saber exatamente como fará o longuíssimo caminho até o vilarejo dos avós. Estamos em um road movie de registro realista, que sabe apreciar as pausas, os silêncios, o acaso.

    O aspecto mais interessante de Através encontra-se na proximidade que a câmera estabelece com os personagens. Em seu caminho, Cintia pega trens, dorme na casa de desconhecidos, fala com famílias nas ruas. A câmera está perto o suficiente para ser percebida, participando como um terceiro personagem à mesa quando se joga dominó, ou na sala de estar quando se ouve música. Apesar da proximidade, a presença dos diretores é invisível: nenhuma pessoa parece atuar para a câmera, ninguém se mostra desconfortável com a filmagem dentro de suas casas. Atinge-se o ideal da “mosca na parede” do cinema direto, mas em uma narrativa de controle fictício. Curioso.

    Assim, tão perto e tão longe, o trio de diretores faz um retrato dos mais belos e generosos sobre Cuba. Estamos longe da idealização de qualquer regime político, ou do enfoque único em Havana. Registra-se a interação entre estranhos, entre turistas e moradores locais, entre famílias e forasteiros. Existe uma saudável abertura ao outro, tanto no percurso destemido de Cintia, quando no olhar daqueles que a acolhem. Este segmento majoritário de Através demonstra um calor humano e um afeto impressionantes, coroados pela atitude autônoma, imponente da mulher solteira cubana.

    Aí chegam, infelizmente, os 20 ou 25 minutos finais. Um homem aparece na narrativa, e a câmera concentra-se apenas nele e em sua relação com Cintia. A grande abertura ao mundo fecha-se no possível romance entre os dois. De repente, surge um ato de violência, brutal e inesperado, primeiramente pelo registro naturalista do filme, mas acima de tudo por vir após tamanha delicadeza, sem aviso ou preparação. É um momento de estrondo, uma cena fortíssima, difícil de assistir. O roteiro cumpre uma promessa feita no início, por uma mulher que joga búzios, selando de certa forma o destino infeliz da protagonista. A partir deste momento, o filme se transforma em outro projeto totalmente diferente.

    O olhar sociológico é trocado pelo psicológico, a universalidade do retrato torna-se individual. Cintia não é mais a mesma personagem, suas motivações para sair de Cuba não são mais racionais, e sim urgentes e sentimentais. A grande confiança que o filme estabelecia entre o público e os cubanos é rompido: aquele homem cordial e acolhedor não existe mais, agora todos são agressores em potencial. Nega-se o que foi afirmado até então. Perdido, o roteiro não sabe muito bem o que fazer com a noção política, com os demais coadjuvantes, com sua poética, e principalmente com Cíntia, abandonada pela câmera no plano final.

    Através começa apostando no ser humano e num pacto de crença com o espectador, para traí-lo agressivamente rumo ao final. Fica um gosto amargo, após uma trajetória tão bem filmada e ricamente desenvolvida (este era certamente um dos melhores, se não o melhor, filme do festival de Brasília), observar este trabalho se transformar numa espécie de obra-choque munida pelo prazer de manipulação emocional. É como se o trio começasse na doçura de Alain Cavalier, para concluir com a rebeldia de Larry Clark. Michiles, Bardella e Martins demonstram um talento ímpar para o cinema, mas seu discurso sobre a liberdade e sobre a vida em comunidade é bastante questionável.

    Filme visto no 48º Festival de Brasília no Cinema Brasileiro, em setembro de 2015.

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