Tom na Fazenda
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Iuri A.
Iuri A.

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5,0
Enviada em 20 de abril de 2014
Tom chega à cidade onde moram a mãe e o irmão do namorado recém-falecido, para participar do seu funeral, e se hospeda na casa deles. Através de Francis, irmão do defunto, que o acorda violentamente no meio da noite, abafando-lhe a boca com a mão para que não se ouvisse a reação do seu previsível susto, descobre que Agathe estava convencida do falso namoro de seu finado filho, Guillaume, com Sarah, amiga de trabalho do casal, conforme ele mesmo contara à anciã, por intermédio do irmão, que até porta na carteira uma foto em que os dois supostos amantes se beijam e que serve a ele e à mãe como troféu da virilidade de Guillaume.

Sob as crescentes pressões psicológicas, ameaças e episódios de agressão física por parte do primogênito, Tom é obrigado a dar continuidade à mentira em que por muitos anos a matriarca creu, sobretudo na intenção de não recrudescer a dor do luto com a revelação póstuma da homossexualidade do filho. Entretanto, a farsa em que agora se envolve Tom, acrescida do efeito dessa inesperada e infeliz descoberta, fragiliza-o racional e emocionalmente e o faz ver e vivenciar a relação indefinida que ele passa a manter com Francis com outros olhos e outras ações que não os da vítima que naturalmente empreenderia esforços para sair dela, percebendo-a doentia e nociva. As cenas de agressão são fortes, sim, mas não se sabe dizer se o elemento erótico que se lhes atrela abrandam a impressão dolorosa, negativa que causam. Tom, é indispensável dizer, passa também a auxiliar Francis nos serviços da fazenda de que é dono, com a mãe, e por cuja administração é responsável.

Há um episódio modelar, à altura da metade do filme, em que, à pia do estábulo, Tom chora e lava agitadamente as mãos e os braços. Neles, o sangue dos ferimentos causados pela recente perseguição de gato e rato que tinha protagonizado com Francis no milharal, que "em outubro, corta como faca", no dizer desse, se misturava ao sangue da vaca a cujo parto tinha acabado de auxiliar e a cujo bezerro Francis deu o nome de "Traseiro de Puta". Segundo a alegação de Francis, esse nome foi dado em razão de Tom ter, segundo suas palavras, um traseiro de puta. A culminância desse episódio na morte do mesmo bezerro, ao que tudo indica efetivada pelo próprio Francis como uma espécie de ameaçador aviso, revelaria a Tom, em circunstâncias normais, certa tendência psicopata do irmão do companheiro passado.

Apesar disso, ele resiste em ir-se embora. Nem a suposta namorada do seu sepultado amor -- sua amiga de trabalho, que a pedido dele vem para confirmar a farsa (será que não foi para desfazê-la?), reanimando a frágil Agathe -- consegue persuadi-lo a ir-se embora imediatamente da fazenda. Ela passou por breves e aterradores momentos de coerção física e psicológica por parte de Francis, nas poucas horas de sua visita, e teme pela integridade física do amigo, cujas marcas de agressão no corpo ela já nota.

Mas ele lhe demonstra estar obstinadamente decidido a não arredar pé dali, em virtude talvez dos pedidos insistentes de Francis e das atitudes que ele empreende, como tirar as rodas do carro de Tom, na intenção, contraditória e inesperada, de prolongar a estada de sua vítima por lá. A causa desse comportamento parece oscilar entre sede de vingança homofóbica e o sintoma de um amor nascente: ou, o que é mais provável, a tentativa de um abafar o outro. Tudo isso, é claro, bem sublimado na intenção de salvaguardar a integridade emocional da mãe. Intenção que, por sinal, é questionável, se se levar em conta o conteúdo do monólogo que se desenvolve na cena do tango. Cena essa que, por sinal, é primorosa quanto à forma e ao conteúdo. Surpreendente pelo que revela – e mais ainda pelo que insinua.

No entanto, à medida que vão surgindo as oportunidades de Tom escapar das garras de Francis, ele vai se entregando às mesmas e cada vez mais violentas garras, reconhecendo nelas até a oportunidade sádica de obter prazer e de sentir o amado morto, que, nas palavras do próprio amante, ao longo do filme "tem o mesmo cheiro do irmão e também gostava de enforcá-lo".

Desejo e punição aí se relacionam, se confundem. Mais: punir-se pela morte de Guillaume através da homofobia - ou talvez homoerotismo sublimado em tortura - extremamente agressiva e violadora de Francis poderia ser uma estratégia empregada por Tom para lenir sua dor. Ou se poderia tratar de um trivial gosto masoquista pela violência, que se manifestaria sendo qualquer objeto de desejo sexual ativo, desde que fosse violento. As ambiguidades, a abertura de possibilidades às vezes entre si inconciliáveis de interpretação, também definem a boa qualidade da obra de arte, sobretudo por oportunizar possibilidade de ampla e profunda reflexão.

Aqui vale mencionar a memorável e intensa cena em que, depois de embriagar-se com Tom, Francis o enforca contra a porta de uma garagem, enquanto diz que ele é o chefe e que deve mandar parar, quando quiser, transferindo, momentaneamente, o poder que era todo dele, estando as suas bocas muito próximas e, nas atitudes de Tom, a não disfarçada vontade de beijar Francis. Fica evidente o prazer sexual que ambos desfrutam naquele momento e a insinuação, nunca confirmada, do desejo homossexual de Francis por Tom, a não ser que interpretarmos seu sadismo como tentativa de sublimação de seu desejo erótico.

Tom à la ferme, Xavier Dolan, 2013, para além das características de thriller psicológico e de ação muito bem acentuadas, que certamente cairão no gosto do grande público que seus filmes inaugurais não abrangiam, também põe em cena abordagens de natureza mais conceituais, ainda que postas de forma sutil, atribuídas à psicanálise, como transferência objetal em razão de perdas e situações traumáticas, desvios momentâneos de personalidade, em consequências das situações similares e do masoquismo sexual, ou pelo menos na sua versão menos latente, sublimada em diversos outros campos que não os explicitamente eróticos.

As explosões emocionais intensas e recorrentes, presentes sobretudo nos episódios de verborragia histérica tão caros ao nosso Hubert, de Je tué ma mère (2009), por exemplo, em Tom à la ferme são diluídas e calibradas num estável, e em razão disso mesmo cativante, clima de suspense. O espectador se prende à história, por ela se desenvolver no ritmo mais ou menos regular de sua respiração, ainda que tenso, e não se arrisca a se perder nas fragmentações, "estilismos" e digressões em que produções como Les Amours Imaginaires (2010) ou Laurence Anyways (2012) se pulverizavam, pelo menos a um público menos especializado e menos afeito a inovações ou retomadas vintages de elementos vanguardistas do cinema francês das décadas de 20 e 30.

O rigor do desenvolvimento temporalmente linear do enredo, em que prevalecem diálogos enxutíssimos e raras "estripulias" cinematográficas típicas a essa mesma vanguarda francesa, não neutraliza a marca e a voz originalíssimas do jovem Xavier Dolan nem compromete a densidade substancial de suas personagens.

O diretor e roteirista que outrora parecia mais preocupado com as inovações formais de suas obras, e com as referências explicitamente autobiográficas, e, para o bem ou para o mal, narcisistas; hoje, com muita sensibilidade e inteligência, com a destreza que só a experiência dá, e que é intensa e extensa, tendo em vista que nosso cineasta nasceu em 1989, se universaliza, transcende a sua primeira fase, análoga à primeira fase egoísta e narcisista da infância proposta por Freud e, como tal, legítima, porquanto considerada indispensável para o seu progressivo desenvolvimento.

Desse modo, produz um filme de suspense aparentemente comum, sem pretensões inovadoras, mas particularmente profundo, sobretudo para quem assiste a ele de modo criterioso, mas não deixando entretanto de usufruir de seu aspecto trivial enquanto filme de suspense.
Enfim, agradam-se gregos, troianos, franceses, americanos, frívolos e austeros. É banal e canônico. Anfíbio, híbrido. Andrógino. Termino aqui, para não incorrer no excesso, que no filme é legítimo, do palavrório hubertiano.
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