Primeiramente, queria ressaltar como impressiona o pico de criatividade do diretor Luca Guadagnino. No mesmo ano em que lançou Challengers, ainda entregou ao mundo Queer. Sem exagero, ambos os filmes estão entre os meus favoritos de 2024. Mas, por agora, vamos deixar o primeiro longa de lado e focar apenas no mais novo trabalho do italiano.
Queer nos apresenta William Lee, um americano que reside na Cidade do México, como o personagem principal de uma história de amor homoafetivo, e como um homem em busca de uma conexão verdadeira, a qual até então ainda não experimentou com ninguém. "Conversar sem falar", essa talvez seja a síntese perfeita e que é proferida pelo próprio Lee.
É propositalmente irônico como o filme constrói a figura de Lee como esse americano que vive lendo os jornais de sua época (por volta de 1950), e que através disso sai espalhando pelas mesas dos bares sobre como os russos são isso ou aquilo, mas a realidade material de Lee é que ele foi obrigado a fugir de seu próprio país (os — segundo a mesma imprensa burguesa — "bonzinhos dos EUA") justamente pelo preconceito e intolerância efervescentes daquele local. O seu refúgio? O lugar que os conterrâneos de William Lee chamariam de "terceiro mundo".
Assim, as paisagens urbanas e naturais da América Latina servem de inspiração para Guadagnino compor os quadros mais belos para essa história de amor lancinante que vem a se desenhar. Quem conhece um pouco da filmografia do cineasta italiano sabe como ele se destaca como um esteta, mas parece que nos últimos tempos ele tem se entregado até mesmo a um estilo mais maneirista de se fazer cinema. O que, para mim, não há nada do que reclamar. Na verdade, essas novas experimentações cênicas do diretor são verdadeiramente primorosas.
E, claro, quem esperar pelas típicas breguices de Hollywood em retratar o México com aquelas manjadas paletas de cores super amareladas e cenários muitas vezes sujos e tipificados, vai ter uma grata surpresa. Em Queer, esse clichê do México amarelo da lugar muitas vezes a tons frios, como o azul em cenas noturnas de encher os olhos. Guadagnino deliberadamente faz um recorte dos cenários mais belos, não só do México, como também de outros países latinos, para compor a narrativa, quase que os elencando como um terceiro personagem. É uma escolha política e muito acertada (não preciso nem explicar o porquê) que se desvela em uma linda homenagem.
Mas se paisagens deslumbrantes podem sugerir um filme mais impessoal, definitivamente não se apegue a essa proposição. Queer tem como sua característica mais proeminente o lado íntimo. Não coincidentemente, essa dicotomia remete bastante ao que o icônico pintor Edward Hopper imprimia com maestria em seus quadros. Assistindo ao filme, diversas vezes me peguei admirando planos que lembravam em muito os quadros de Hopper — e é difícil acreditar em coincidências quando há um cineasta como Guadagnino por trás de tudo —. Planos abertos e volumosos, mas que, através da manipulação de cores, de objetos cênicos, e tantos outros artifícios, remetem a uma solidão latente. Alguns planos, inclusive, pareciam mesmo tableaux vivants (quadros vivos, recriados em fotografia).
Ainda sobre o tema, é interessante notar como o diretor também se aproveita muito bem desses planos mais abertos para justamente intensificar o impacto dos seus planos mais fechados. Com uma decupagem rigorosa, o italiano desfila mais uma vez uma de suas marcas mais notórias, os closes, carregados de movimentos, nas peles, nos dedos e nas suas intersecções. Tudo é muito tátil e sinestésico. Diga-se de passagem, o afiado trabalho de som também é fundamental nesse aspecto. Mas esses planos fechados não ficam apenas nos personagens e em partes dos seus corpos. Às vezes, os focos em pequenos objetos, como um copo de vidro, uma agulha ou uma carteira de cigarros — todos cheios de textura, sujados/pintados no maior dos caprichos pela equipe de arte —, são tão evocativo que te transportam para aquele universo, para aquela ideia.
Em síntese, essa é a tônica do filme. Entre idas e vindas, viradas e mudanças de direções surpreendentes da narrativa, a dualidade entre o extravagante e o intimismo, aliada à incrível estética visual e sonora, fazem de Queer um filme magistral e prontinho pra nunca mais sair da memória.
*Isso porque eu não quero entrar em detalhes sobre aquele clímax inacreditável, maluco, plástico e inesquecível que só quem viu sabe do que eu tô falando.
Mas não acaba por aí. O que eu vou falar a seguir não é spoiler porque não é sobre a narrativa do filme, mas há quem prefira não saber. Imagine que você está no cinema e o filme perfeito acabou de encerrar. Você, portanto, já está bastante emocionado e impactado com aquilo. Não satisfeito com isso, o filme ainda te da uma última porrada (no melhor dos sentidos). A voz do fucking Caetano começa a ecoar pela sala. Sim, surge uma música, feita para o filme, pela dupla Trent Reznor e Atticus Ross (que também assinam a belíssima trilha sonora do longa) em parceira com nosso ícone tropicalista Caetano Veloso. "Vaster Than Empires". Você pode achar que estou exagerando, mas essa canção consegue ser tão boa quanto o filme. Que presente.
Vão ao cinema. Assistam Queer.