“O filho de mil homens” é um filme que incomoda porque trata o espectador como adulto emocional. Em vez de servir respostas prontas, ele oferece silêncios, frestas, pequenos gestos. A narrativa é construída como quem acaricia uma ferida antiga: com cuidado, mas sem medo de tocar onde dói. A história desse pescador que deseja ser pai, desse menino que deseja pertencer, desse conjunto de figuras deslocadas à margem do “normal”, poderia ter sido filmada como melodrama barato. Em vez disso, o que se vê é um cinema que aposta na delicadeza como forma de radicalidade.
A direção organiza o filme como uma espécie de teia afetiva. Não há correria, não há medo do tempo demorado, não há receio do plano que insiste um pouco mais no rosto, no mar, na casa vazia, no objeto banal que de repente concentra uma biografia inteira. A mise-en-scène é sóbria, quase pudica, mas nunca fria: a câmera parece respeitar os personagens, aproximando-se sem invadir, observando mais do que explicando. É um cinema que confia na inteligência sensível de quem assiste — e isso, no nosso contexto, já é um gesto político.
A fotografia é um capítulo à parte. Ela traduz em luz e sombra aquilo que os personagens não conseguem dizer. A paisagem não está ali para “embelezar” o quadro: ela espelha as rachaduras, a dureza, a solidão dessas vidas. Há uma rudeza luminosa nessas imagens: o horizonte sempre um pouco distante, o mar que tanto abriga quanto ameaça, os interiores apertados que parecem não caber aqueles corpos cansados. Os enquadramentos frequentemente colocam as personagens ligeiramente deslocadas, nunca exatamente no centro, como se o mundo estivesse sempre um pouco torto para elas. A beleza do filme nasce justamente dessa imperfeição: é uma beleza ferida, que conhece o peso da exclusão.
O elenco sustenta com enorme dignidade essa arquitetura visual. O pescador que deseja ser pai não é transformado em herói santificado, nem em caricatura do homem simples “do povo”. Ele é ambíguo, contraditório, cheio de pequenas covardias e pequenos atos de coragem. O menino, por sua vez, não é figura decorativa: sua presença reconfigura a vida adulta à sua volta, como se lembrasse o tempo todo que a infância é o território onde a violência cotidiana mais se imprime. As mulheres, os personagens queer, as figuras que carregam no corpo e na alma as marcas do preconceito, não são tratados como “casos sociais” para ilustrar tese progressista: são pessoas, inteiras, complexas, às vezes luminosas, às vezes destrutivas.
A direção de atores faz o filme respirar. Há uma contenção quase sempre à beira do transbordamento. Em vez de grandes explosões dramáticas, o que se extrai do elenco são fraturas, hesitações, olhares que dizem muito mais do que discursos inflamados. Quando o choro vem, ele vem como último recurso, não como truque fácil de manipulação. O filme sabe que a dor verdadeira raramente é performática. E o espectador que se deixa atingir por essa contenção sai da sessão com a sensação de ter convivido com gente, não com personagens.
Tudo isso seria, por si só, suficiente para fazer de “O filho de mil homens” uma obra relevante. Mas há um outro nível em jogo: o filme é um exame de consciência coletivo. Ele mexe com a fantasia de família que ainda domina o imaginário brasileiro - branca, heteronormativa, nuclear, ajustada, “de comercial de margarina”. Ao apresentar uma constelação de afetos entre pessoas rejeitadas, estigmatizadas ou consideradas “inadequadas” pelos padrões hegemônicos, o filme comete um crime imperdoável contra o conservadorismo: ele torna essas vidas desejáveis. Não no sentido do exotismo, mas no sentido profundo do direito a existir, amar e ser amado.
É aqui que se instala o desconforto. Porque vivemos em um país atravessado por um analfabetismo cultural, estético, político e social cuidadosamente alimentado. Não é ignorância espontânea, é projeto. Décadas de desmonte da educação, de desvalorização das artes, de banalização da violência, de culto ao entretenimento imediato, produziram um público incapaz de lidar com a ambiguidade e com a diferença. Uma parte significativa desse público olha para o filme e não enxerga delicadeza, apenas “lentidão”. Não vê complexidade, apenas “confusão”. Não reconhece humanidade, vê “ideologia”.
Esse analfabetismo não se resume apenas às letras, é afetivo. É a incapacidade de ler um enquadramento, um silêncio, um gesto de cuidado entre dois homens, o cansaço de uma mulher que foi reduzida à função de servir. É a recusa em admitir que a diversidade não é tema “de nicho”, mas matéria-prima da própria realidade brasileira. Assim, o filme, ao propor uma família que nasce do encontro entre rejeitados, acaba funcionando como teste de sensibilidade, à medida que expõe quem não suporta essa família ao fato de que, no fundo, está dizendo muito mais sobre os próprios limites do que sobre a “qualidade” da obra.
“O filho de mil homens” desconcerta justamente porque não explica tudo, não mastiga, não pontua com sublinhados morais. Ele nos oferece uma experiência estetizada da vulnerabilidade, com planos que demoram um pouco além do confortável, diálogos que não resolvem a cena, gestos que começam e não terminam. Há quem, diante disso, se irrite: “não acontece nada”, “não entendi”, “é filme para intelectual”. Mas talvez o problema seja outro, haja vista que estamos tão acostumados a produtos que nos tratam como consumidores apressados que, diante de uma obra que exige outra postura, reagimos com hostilidade, como se o filme nos devesse uma pedagogia mínima de leitura.
Não deve. Arte não é tutorial. O que esse filme oferece é a oportunidade rara de reeducar o olhar e a escuta. Ele nos pergunta, com delicadeza implacável: o que é família para você? Quem merece estar à mesa? Quem tem direito a afetos públicos e protegidos? Que corpos você aceita ver abraçados na tela sem sentir necessidade de justificar, explicar, “tolerar”? Essas perguntas não aparecem como slogans, aparecem como cenas, como imagens, como encontros improváveis. E, justamente por isso, são mais difíceis de descartar.
Assistir a “O filho de mil homens” no Brasil de hoje é um ato de resistência íntima. É escolher não se deixar sequestrar pela pressa, pela superficialidade, pela crueldade normalizada. É aceitar que cinema também serve para nos expor, para revelar o quanto ainda somos estruturalmente incapazes de respeitar a diversidade que dizemos celebrar em discurso vazio. A obra dói porque mostra que, enquanto parte da plateia ri de nervoso, faz piada, se incomoda com um beijo, um toque, um corpo fora do padrão, há pessoas reais vivendo diariamente aquilo que ali aparece condensado em duas horas.
Em geral, o filme não nos oferece consolo fácil. A felicidade que ele insinua é frágil, construída com restos, com escolhas improváveis, com pequenas rebeldias íntimas. E talvez seja justamente por isso que ele permanece na memória: porque nos lembra que, num país que insiste em manter sua população em estado de anestesia cultural, amar é um ato de desobediência. “O filho de mil homens” é, acima de tudo, um convite a essa desobediência. Quebremos o pacto de mediocridade estética e moral que nos ensinaram a aceitar. Olhemos de verdade para essas vidas na tela – e, quem sabe, finalmente, para as nossas.