Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Honey, Não!

Em Honey, Não!, Margaret Qualley, Aubrey Plaza e Chris Evans abraçam o caos

por Nathalia Jesus

Em Honey, Não!, Ethan Coen retorna à direção solo com uma trama que parece unir dois mundos: o da comédia absurda que sempre o definiu e o do noir californiano em plena decadência. A história acompanha Honey O’Donahue (Margaret Qualley), uma investigadora particular de uma pequena cidade que se vê envolvida em uma teia de mortes e coincidências depois que uma mulher que procurava seus serviços morre misteriosamente em um acidente de carro. O caso leva Honey até uma igreja liderada pelo enigmático reverendo Drew Devlin, vivido por Chris Evans, e o que começa como um trabalho banal logo se transforma em uma sucessão de pistas falsas, chantagens e fugas em alta velocidade pelo interior da Califórnia.

A trama é propositalmente caótica. Coen brinca com a estrutura do gênero policial — as pistas não levam a lugar algum, os personagens mentem sem motivo, e a lógica cede espaço à improvisação. É como se o diretor estivesse interessado menos em resolver o mistério e mais em observar o modo como seus personagens se perdem nele. O resultado é um noir luminoso, ensolarado, que troca a sombra e o cigarro pelo calor e o asfalto.

Margaret Qualley é o coração do filme. Sua atuação combina leveza e excentricidade, lembrando as heroínas erráticas dos Coen, mas com um toque contemporâneo. Ela transforma Honey em alguém que sobrevive mais pela intuição do que pela razão — uma mulher cínica, mas curiosamente otimista. Já Aubrey Plaza, como a policial MG Falcone, surge como contraponto ideal: pragmática, contida, e ainda assim aberta ao absurdo. A dinâmica entre as duas é o motor narrativo da história, sustentando o filme mesmo quando o roteiro se entrega ao devaneio.

A relação entre Honey e Falcone é um dos aspectos mais interessantes do longa. O roteiro as coloca inicialmente em lados opostos (a detetive freelancer e a policial metódica), mas à medida que a trama se desenrola, surge entre elas uma cumplicidade inesperada. Não se trata exatamente de amizade, tampouco de rivalidade, mas de uma parceria construída na base da desconfiança e do sarcasmo. Em muitos momentos, o humor nasce justamente do atrito entre as duas, que se testam o tempo todo sem jamais perder o interesse uma pela outra.

Ethan Coen filma essa relação com uma mistura de afeto e ironia. As conversas entre Honey e Falcone, cheias de pausas e olhares enviesados, revelam uma intimidade que cresce sem precisar ser explicada. Plaza e Qualley exploram essa tensão com naturalidade: enquanto a primeira oferece um ceticismo quase filosófico, a segunda responde com leveza e improviso, como se cada diálogo fosse um jogo de resistência. Juntas, elas mantêm o filme em movimento e transformam o que seria uma simples investigação em uma estranha cumplicidade.

Um Chris Evans fora da curva

Entre os coadjuvantes, é Chris Evans quem mais surpreende, ainda mais considerando o seu histórico de personagens certinhos e "quadradões". Seu reverendo Devlin é uma figura ambígua; um líder espiritual com carisma de astro pop e um sorriso que oscila entre o sedutor e o sinistro. Evans desmonta sua imagem heroica ao encarnar um homem movido pelo poder e pela manipulação emocional, um pregador que acredita no que diz, mas usa a fé como instrumento de dominação. Ele representa o lado mais sombrio do filme, um reflexo de um país que confunde redenção com espetáculo.

Coen o filma com ironia: Devlin é sempre enquadrado em luzes douradas, como se estivesse constantemente em cena diante de um público invisível. É uma sátira direta ao culto da celebridade e ao uso da espiritualidade como performance, temas que o diretor insere com sutileza, sem pregar moral. O personagem ajuda a dar alguma densidade ao enredo, servindo como âncora simbólica em um universo que, de outro modo, parece girar em torno do acaso.

Visualmente, Honey, Não! traz de volta marcas conhecidas: personagens perdidos, crimes mal-executados, coincidências absurdas. Mas Ethan Coen parece mais interessado em subverter do que repetir. Se o noir tradicional é feito de sombras e tragédia, aqui ele o transforma em uma comédia solar, com cores vibrantes e um ritmo que alterna humor e desconforto. A fotografia destaca o contraste entre o brilho do deserto e a sujeira moral de seus personagens.

A estrutura narrativa, porém, é irregular. Há momentos em que o filme parece desabar sobre si mesmo, incapaz de manter o foco. O mistério central se dilui em divagações e diálogos que beiram o absurdo; um traço que pode ser lido tanto como charme quanto como fragilidade. Essa indecisão entre sátira e homenagem faz com que Honey, Não! soe menos coeso do que o diretor talvez desejasse, mas também mais humano, mais curioso sobre o absurdo do comportamento.

Ainda assim, há algo fascinante nessa imperfeição. Coen parece ciente de que está revisitando o próprio passado e testando seus limites fora da parceria com Joel. Honey, Não! é menos uma reafirmação e mais um laboratório, uma tentativa de reencontrar o tom num cinema que já se acostumou a imitá-lo. A leveza e a falta de pretensão, que em outros contextos poderiam ser defeitos, aqui funcionam como um respiro.

Honey, Não! traz a comédia do absurdo

Se a narrativa tropeça, a ironia salva. Coen continua mestre em transformar o erro em piada, o desespero em absurdo. Cada reviravolta parece construída para lembrar que o acaso é o verdadeiro protagonista. As personagens agem por impulso, cometem os mesmos erros e seguem em frente como se nada tivesse acontecido. Nesse sentido, o filme se conecta a toda uma tradição de humor trágico dos Coen, mas com um olhar mais brando..

No fim, Honey, Não! pode ser lido como um autorretrato disfarçado: um cineasta veterano revisitando as engrenagens do gênero que o consagrou, agora sem o peso da perfeição. O filme não tenta ser memorável, apenas coerente com sua própria bagunça. Há ritmo, há personalidade e há momentos de puro prazer cinematográfico, especialmente nas interações entre Qualley e Plaza, que transformam o absurdo em algo quase familiar.

O resultado é um noir cômico que alterna charme e desordem, humor e melancolia. Pode não ser um retorno triunfante, mas é um lembrete de que Ethan Coen continua capaz de encontrar poesia no erro, riso no colapso e, principalmente, humanidade no caos.

Honey, Não! é um mosaico imperfeito, divertido e curioso — um noir solar sobre fé, culpa e coincidência, sustentado por uma performance magnética de Margaret Qualley, uma parceria afiada com Aubrey Plaza e um vilão um tanto quanto cativante de Chris Evans.

*O AdoroCinema assistiu ao filme no Festival do Rio 2025.