Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Alice Júnior

Necessidade que transborda à tela

por Sarah Lyra

Alice Júnior é um filme que se faz essencial, enquanto obra cinematográfica, já em sua concepção. A premissa de abordar inquietações e anseios de uma jovem transgênero, sem que isso necessariamente seja o foco do drama, é, no mínimo, louvável. Em algum ponto, dada a sociedade preconceituosa em que vivemos, a condição da protagonista inevitavelmente se torna uma questão, mas o que chama atenção neste projeto é que a abordagem do diretor Gil Baroni não lança um olhar julgador sobre aqueles, digamos, menos esclarecidos, se dispondo até a ser didático em relação ao complexo tema. O cineasta parte da ideia de que não se nasce sabendo. No entanto, a partir do momento em que há uma recusa deliberada à elucidação, a situação se torna mais problemática.

Alice (Anne Celestino) é uma garota como qualquer outra: passa a maior parte do tempo livre na Internet, vive um amor platônico e fantasia com o primeiro beijo, enquanto lida com dramas colegiais que envolvem bullying, triângulos amorosos, aceitação em grupos de amigos e questões de autoimagem. A diferença é que, por ser trans, esses problemas, que já são graves por si só, se tornam ainda mais intensos. Por isso, é um frescor notar como Baroni sequer cogita a possibilidade de diferenciá-la de seus pares. Ao retratar a relação entre a protagonista e seu pai Jean (Emmanuel Rosset), o diretor opta por uma interação em que a figura paterna não só entende, como aceita completamente a condição da filha. Não há um único momento na trama em que Alice ser trans seja uma questão para o pai, muito pelo contrário. Ele enaltece a diversidade da filha e mostra que, ao contrário do que se imagina, é algo perfeitamente natural.

Uma das cenas mais reveladoras nesse sentido é quando os dois fazem uma refeição caseira juntos, e, ao soltar um palavrão, a filha é repreendida pelo pai por conta do termo usado, que ele considera ofensivo. “Palavrão na mesa, não, Alice”, diz Jean. Com isso, Baroni diz que o foco está em abordar os desgastes de convivência existentes em qualquer relação familiar. Esse aspecto é reforçado na interação entre um dos estudantes, que é gay, e sua mãe, com quem possui um relacionamento saudável. Nos momentos em que decide lembrar o espectador da condição de Alice, o realizador aponta para um tratamento ainda muito primitivo por parte da sociedade quando se fala em respeito aos direitos trans, como o uso de banheiros públicos conforme a sua identidade de gênero.

Todo o trecho do longa destinado a abordar essa questão, especificamente, é tratada com uma sensibilidade notável, além de deixar o questionamento mais do que evidente: como é possível que, nos dias atuais, algo tão elementar ainda esteja em debate? A abordagem de Baroni em si apresenta alguns problemas, principalmente no roteiro. Para um filme que se pauta tanto em sutilezas e no contrafluxo para comunicar sua mensagem, a cena em que Alice não consegue ir ao banheiro e acaba sendo humilhada na frente dos colegas soa excessiva, embora as reações em si pareçam cruelmente realistas.

Um momento também marcante é aquele em que um dos amigos mais próximos de Alice diz que ela não parece ser trans, ao que a garota responde: “isso é uma coisa horrível de se dizer a uma trans”. Intrigado pela fala da amiga, o garoto precisa receber toda uma explicação sobre o que está implícito na pergunta — e, nesse momento, a personagem dá uma verdadeira aula em sua resposta. Outro ponto interessante do roteiro de Luiz Bertazzo é o desfecho encontrado para o triângulo amoroso. Embora a mensagem empoderadora em voice-over seja excessivamente explicativa, a ideia de abrir mão completamente de rótulos pré-estabelecidos se mostra uma decisão sábia e acertada diante da temática proposta e do público-alvo do projeto.

Alice Júnior — e Anne Celestino, mais especificamente — abre o caminho para o que se espera ser uma rica trajetória de empoderamento dos artistas transgêneros no cinema brasileiro, em que a intolerância dê lugar à elucidação e o respeito à diversidade não pareça algo de outro mundo.

Filme visto no 26º Festival de Cinema de Vitória, em setembro de 2019.