Críticas AdoroCinema
2,5
Regular
Fakir

A arte da fome

por Bruno Carmelo

Talvez tenha restado pouco, no Brasil de 2019, da arte do faquirismo. O imaginário de homens e mulheres jejuando, dormindo sobre cama de pregos, cercados por serpentes ou perfurando o próprio corpo remete a um exotismo que se considera distante – oriental, para ser mais específico. Por esta razão, o trabalho investigativo efetuado por Helena Ignez nos remete ao desaparecimento de uma forma de arte, de uma profissão e de uma lembrança histórica. Afinal, como se descobre no filme, o Brasil já foi o líder mundial em recordes de jejum, quando as apresentações de artistas raquíticos dentro de suas caixas transparentes levavam à visita de milhares de pagantes.

Fakir também toca em questões sociais que ultrapassam esta atividade específica. O filme acena a uma forma de jornalismo sensacionalista que se transformou muito ao longo das décadas, para o qual as mulheres eram vistas sobretudo por seus atributos físicos (os artigos da época ressaltam a cor dos cabelos, a “formosura” das faquiresas, a paixão dos fãs masculinos). Ele também demonstra o prazer humano em controlar o próprio corpo, em impor a autoridade do espírito à matéria, superando a dor e a fome em busca de certa forma de sublimação. Diante destas pessoas presas, permanecendo mais de cem dias enclausuradas à base de água salgada, a nossa própria fragilidade humana é sublinhada. Ignez faz questão de associar esta prática ao nudismo, ao erotismo feminino e a outras formas de autonomia do indivíduo sobre seu corpo.

No entanto, é uma pena que estes questionamentos fiquem à margem do documentário, muito mais preocupado em citar os principais faquires e faquiresas da nossa história. O projeto privilegia a lista de nomes de artistas, junto dos recordes de jejum pessoais e de um ou outro dado familiar (um deles matou a esposa, outra cometeu suicídio). Fakir torna-se descritivo ao invés de propriamente reflexivo. O que leva uma pessoa a enfrentar a dor? O que passa na cabeça durante todo este tempo de clausura? Como era a vida afetiva, familiar e econômica destes artistas durante o auge do faquirismo? Como houve o declínio da profissão? De que modo a arte da fome, voluntária e controlada, dialoga com a penúria involuntária de artistas contemporâneos? Houve alguma contestação quanto ao fetichismo do corpo feminino nestas condições?

O projeto não fornece resposta a estas nem a outras questões fundamentais ao tema. Mesmo assim, Ignez dispunha de ampla pesquisa, e da presença de muitos destes artistas, hoje idosos, dispostos a reencenar apresentações às câmeras. Ora, a preciosidade destes momentos metalinguísticos é desperdiçada: as cenas dentro do bar se resumem a flashes rápidos, incapazes de discutir o corpo hoje envelhecido (ou seja, a passagem do tempo), em captação fraca de imagem e som (parte dos trechos inseridos no corte final parece provir do making of). Na maioria destas cenas, a câmera ainda busca seus movimentos e o alvo exato dos enquadramentos enquanto filma, mesmo dentro de um ambiente controlado, sobre os trilhos dispostos no chão para a passagem da câmera. Para um filme sobre a arte do controle, as escolhas estéticas soam dispersas, como se refletidas no instante da captação.

O projeto transmite a impressão de uma estrutura encontrada somente na edição, em conjuntura com aspectos técnicos um tanto deficientes. Compreende-se que a marginalidade do faquirismo se alie a uma estética igualmente despojada, porém a captação e edição de som vacila bastante (o som abafado da cena de abertura, o vento forte de algumas externas atrapalhando a compreensão, a repetitiva trilha sonora de jazz). A narração ora adota um tom pedagógico, ora permite o estilo coloquial; ora investe na voz da diretora, ora prefere a fala menos articulada de um narrador masculino. Qual é o debate proposto para além da curiosidade destes profissionais, do exotismo de suas profissões? Qual é a conexão com o tempo presente?

Sem conseguir inscrever o faquirismo num contexto social mais amplo, o resultado é uma obra de constatação, repleta de ideias com forte potencial aqui e acolá, porém deixadas em segundo plano pela estrutura expositiva. A conclusão final, pela voz de Helena Ignez, tampouco ajuda a costurar a narrativa: “Tudo isso, vejo como uma trama do cosmos para a gente ser feliz”. A intenção, como se percebe, é nobre, porém ampla demais para um tema tão específico, e moral demais para uma questão de ordem artística, histórica e social. Os faquires não podem se limitar a nomes, fatos marcantes e números de jejum. O faquirismo precisaria ser não um ponto final, e sim um ponto de partida.

Filme visto no 14º Festival Latino-Americano de Cinema de São Paulo, em julho de 2019.