Críticas AdoroCinema
2,5
Regular
O Filho do Homem

A fé move montanhas

por Renato Furtado

Encerrados no interior de um salão iluminado apenas pela luz do fogo, alguns homens esbravejam uns contra os outros, divididos em dois grupos: aqueles que acreditam e aqueles que não. A cisão poderia justificar-se somente no apartamento formado pela capacidade ou incapacidade de crença, na existência ou não da fé dentre os espíritos dos personagens em cena, se o objeto de credo em questão não fosse uma das mais relevantes figuras da cultura e mitologia ocidentais: Jesus Cristo. No entanto, para um filme como este O Filho do Homem, focado nos eventos que levaram à crucificação do santo homem e naqueles que a sucederam, incluindo sua ressurreição, (felizmente) há muito acontecendo ao redor do personagem interpretado, com equilíbrio e profundo comprometimento, por Allan Ralph.

Um dos grandes acertos do diretor e produtor Alexandre Machafer, nesta produção inteiramente rodada na cidade do Rio de Janeiro, é justamente ambientar e solidificar narrativamente os últimos dias de Cristo pelo olhar daqueles que o seguiam e daqueles que o odiavam veementemente. Não que O Filho do Homem seja uma espécie de projeto coral, atento aos diversos papéis desempenhados pelos atores que contracenam com Ralph — que assume a liderança inequívoca da narrativa, como não poderia deixar de ser. Mas, por outro lado, é evidente que este longa é verdadeiramente um caso de um todo que é engrandecido pela soma de suas partes, compondo uma máquina repleta de funcionais engrenagens que opera de modo a superar suas limitações e a ultrapassar a marca deixada por seus deslizes iniciais.

Praticamente dividido em duas etapas, debruçando-se sobre o período anterior ao nascimento de Jesus e, posteriormente, sobre a época supracitada, o independente O Filho do Homem escorrega, de fato, quando tenta encapsular 33 anos de história, e um pouco mais, no espaço de apenas duas horas de duração. Resulta que a fase primeira da obra conclui-se como um tipo de colcha de retalhos, onde a fraca montagem, episódica e quase anedótica, luta em vão para costurar cenas desconexas, cuja linearidade e evolução são apreendidas mais por conhecimento prévio do espectador do que por um esforço em si da edição. Sobram fade-ins e fade-outs (as dissoluções de imagem da tela preta para a cena e da cena para a tela preta, respectivamente) e também um certo distanciamento, gerado pela irregularidade de ritmo.

Em outras palavras, flashes curtos e breves interações apresentam personagens que, à exceção da mãe do filho de Deus e do Rei Herodes, serão praticamente esquecidos na metade final da projeção. Ainda que a porção inicial guarde aquela que é uma das melhores sequências da trama — quando a jovem Maria (uma ótima Júlia Cotta), protagonista de um sóbrio e tenso pesadelo de José, corre em câmera lenta para evitar ser apedrejada, vinda do fundo do plano, até interromper-se em um close memorável, onde a atriz quebra a quarta parede, encarando o público com olhar de súplica, angústia e desespero —, tudo soa injustificado. São alguns consideráveis minutos que, se eliminados do corte final, poderiam deixar o longa sem "gorduras" narrativas, não diluindo a carga dramática dos eventos realmente relevantes para o projeto.

Desse modo, por mais que obviamente façam parte da mesma história, as duas metades de O Filho do Homem quase assemelham-se a dois filmes distintos que, a despeito da continuidade, deveriam ter permanecer separados. A questão, enfim, não é necessariamente que a fase inicial seja prejudicial, mas que ela é, sim, muito mais fraca que a final por causa da pressa e da ansiedade com que a trama se desenrola neste ponto, em direção ao núcleo narrativo do roteiro, a cena da Última Ceia. É só mesmo no ato final, onde é contada a adultidade de Jesus, que Machafer finalmente encontra o caminho certo, acostumando-se à toada para aliar bem as geralmente boas interpretações que extrai de seu numeroso elenco ao impressionante design de produção de sua obra, ressaltando ambos os âmbitos.

A direção de arte de O Filho do Homem, a propósito, merece uma nota à parte, uma vez que a competente cenografia faz surgir uma Jerusalém do século I bem no meio da Cidade Maravilhosa, reproduzindo templos, casas e ruas judaico-cristãos em um local que não recebeu uma influência visual ou arquitetônica direta deste antigo povo. Destacam-se igualmente as indumentárias, os objetos de cena, os adereços utilizados pelos atores e a maquiagem, responsável, por exemplo, por marcar as costas de Ralph com as chicotadas que Cristo levou antes de iniciar sua via crúcis. Para uma produção independente como esta, que não contou com um largo orçamento, o trabalho dos artistas Ronald Teixeira, Guilherme Reis e Mari Pin foi crucial para retratar um mundo tão distante da realidade concreta do Rio de Janeiro.

É o ótimo desempenho, no fim das contas, de toda a equipe por trás das câmeras, incluindo a direção de fotografia de Kleber Paredes e a montagem — que enfim encaixa o compasso a partir do clímax, iniciado pela enérgica e trágica cena do "referendo" proposto por Pôncio Pilatos, que lava as mãos e deixa a decisão de libertar Jesus ou Barrabás para o povo da Judéia —, que faz com que O Filho do Homem eleve-se. Ao fugir da tentação (pegando carona aqui em um conceito da linguagem bíblica) de recorrer ao melodrama exacerbado ou a um didatismo tosco, o realizador e sua equipe entregam uma obra repleta de honestidade e autenticidade, que não esconde em nenhum momento suas pretensões: este é um longa de adoração e de muita fé, bem concretizado dentro do seu horizonte de objetivos.

A violência vem na medida certa, assim como a moral, em uma prova de que Machafer preocupou-se em conjugar a mensagem espiritual ao entretenimento, como mostram suas cenas mais arrojadas — toda a sequência da via crúcis até o ato da crucificação é uma mistura para lá de eficiente entre as atuações, a rápida montagem, alternando entre vários pontos de vista da multidão e do próprio Jesus, e a fotografia. É nos planos mais abertos e em sua indiscutível qualidade teatral, muito presente nas performances e no jogo de cena, que O Filho do Homem demonstra ser um projeto de devoção: a fé realmente move montanhas, mas também ajuda a fazer milagres com verbas de produção modestas, mesmo com alguns ocasionais equívocos e/ou excessos narrativos.