Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Aves de Rapina - Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa

Violência colorida

por Barbara Demerov

Diamantes são os melhores amigos de uma garota. Marilyn Monroe eternizou essa frase no cinema há seis décadas e, mesmo após tanto tempo, ela ainda dá um jeito de encontrar o caminho de personagens como Arlequina. Há uma determinada cena em Aves de Rapina que funciona tanto como homenagem como para se encaixar perfeitamente no atual cenário psicológico da protagonista. Isso traz a emancipação do título (que não se diz somente respeito à Harley, é claro) como uma forma de mostrar ao espectador que a anti-heroína passa a enxergar o mundo com a clareza de uma mulher independente – ainda que com uma pitada de insanidade ingênua. E é com esse estilo que mistura tons de fantasia com vislumbres de consciência que Aves de Rapina toma sua forma.

Apesar de não ser propriamente uma história de origem, o filme de Cathy Yan traz em cada personagem do grupo inúmeras variações de tal emancipação (que sempre está ligada a homens), tocando em temas como vingança, machismo e violência - física e psicológica – para compor o universo de cada uma. Dessa forma, conhecemos Canário Negro, Renée Montoya, Caçadora e Cassandra Cain não por suas histórias pessoais (só há uma exceção entre elas), mas sim pelo o que as faz optarem por sair do lugar em que se encontram hoje. Aliado a esse olhar de Yan e ao roteiro de Christina Hodson, Aves de Rapina toca em temas bem complicados e intensos com enfoque a um visual brilhante e multicolorido, que vai das roupas de Harley às ferramentas que usa para combater policiais e inimigos. E o melhor dessa preferência é que o filme nunca se depara com um tom infantil. Este ainda é um filme adulto sobre mulheres que precisam se libertar de alguma forma – seja do passado ou de alguém.

Mas, em contraponto com o cuidado do roteiro em mesclar momentos de maturidade com momentos de descontração e piadas, temos em Arlequina uma narradora nada perfeita. Por mais divertido que seja acompanhar a protagonista contando sua própria história – e principalmente por seguirem com a essência da personagem, com todas as alternâncias e conflitos mentais –, há inúmeras idas e vindas no roteiro que atingem a narrativa de forma um tanto negativa. A montagem torna-se problemática em cenas que soam mais complicadas do que são na realidade, e isso acontece pelo fato de o filme ser "rebobinado" em alguns momentos. É compreensível que tal escolha tenha sido proposital para justamente transparecer o quão confusa ou incompreensível seja Harley, mas tecnicamente e narrativamente falando, ela simplesmente não funciona tão bem.

A sorte é que Margot Robbie prova, mais uma vez, que dentre suas muitas facetas, nasceu para interpretar Harley Quinn no cinema. Em nenhum momento sua ingenuidade corta a intensidade de momentos importantes; pelo contrário, ela só os impulsiona a serem ainda mais interessantes e contrastantes quando divide a tela com suas companheiras de ação. Além disso, em Aves de Rapina há um trabalho de humanização para sua personagem, com Harley tendo de lidar com inúmeros inimigos a partir do momento em que termina seu relacionamento tóxico com "Mr. J" e, principalmente, aprender que é possível ser uma pessoa melhor sem necessariamente deixar de ser uma mercenária. As camadas em Harley são muitas, e aqui estão bem implícitas nas decisões que ela precisa tomar.

Quanto ao elenco feminino, Rosie Perez surpreende como Renée Montoya e traz uma personagem cuja realidade praticamente não muda do início ao fim: ela começa o filme tentando superar o machismo da polícia e acaba não conseguindo, mas o que muda é seu olhar para estes problemas e é isso o que importa, afinal. Na verdade, todo o time passa por essa mudança de olhar: Canário Negro vai contra o ambiente abusivo que seu chefe, Roman "Máscara Negra" (interpretado de forma bastante caricatural por Ewan McGregor), propicia; Caçadora garante seus meios de conseguir o que mais almeja para depois ver que seu plano final era apenas o início de algo muito maior; e Cassandra Cain encontra firmeza num lugar em que nunca esperava – mas é, de longe, a personagem menos trabalhada dentre as cinco mulheres. A Caçadora de Mary Elizabeth Winstead definitivamente merecia mais espaço por ter a motivação mais ligada a Victor Zsasz (Chris Messina) e Roman, mas toda e qualquer cena em que apareça (seja atual ou em flashback) faz valer cada segundo.

Porém, ainda que as motivações de cada integrante deste audacioso grupo sejam trabalhadas de forma muito clara enquanto indivíduos, quando a narrativa enfim as une no ato final é difícil não pensar na razão específica pela qual elas escolhem se unir. Logicamente, a emancipação de cada uma pode ser vista como uma fagulha no início do filme e uma explosão próximo ao seu desfecho, mas ainda falta um estímulo maior para que tudo aconteça de forma mais natural. O grande acerto em Aves de Rapina acaba por ser a escolha de uma linguagem dinâmica que traz entusiamo em cada cena de ação, com sequências muito bem coreografadas e uma direção extremamente fluida de Cathy Yan – responsável, também, por um dos embates mais "pé no chão" protagonizado por mulheres.

Yan alcança a proeza de fazer um filme com muita personalidade, carisma e representatividade sem forçar o diálogo para que isso aconteça. Afinal, já era de se esperar que um filme sobre mulheres cujo objetivo principal seja o de (re)conquistar seu espaço e liberdade falaria sobre o abuso de poder originado de homens. Mas Aves de Rapina não se sujeita a discutir apenas isso. Mesmo com uma trama relativamente simples (um diamante é o ponto central de toda a ação), o que mais parece se destacar ao fim da projeção é que este grupo de desajustadas funciona tanto individualmente quanto em coletivo, pois todas encontraram sua própria voz para lidar com o que quer que seja necessário. Um diamante pode ser o melhor amigo de uma garota (e a ajudar bastante, inclusive), mas o importante é saber que ela mesma já se basta.