Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Che, Memórias de um Ano Secreto

O peso de um ícone

por Bruno Carmelo

Em 1965, Che Guevara sumiu. O comandante da Revolução Cubana, apadrinhado por Fidel, desapareceu dos holofotes de tal modo que nem os serviços de inteligência estrangeiros suspeitavam de seu paradeiro. Na verdade, durante este período, Che fez longas viagens ao Congo belga e à Tanzânia, para averiguar as condições sociais do local e eventualmente disseminar seus ideais. Depois, diante do fracasso da empreitada e impedido de retornar a Cuba por causa da “carta de despedida” que havia escrito, foi a Moscou, Paris, Praga e outras cidades, usando disfarces, perucas, próteses. O primeiro interesse deste documentário diz respeito à revelação de um período oculto da história, graças aos depoimentos esclarecedores do biógrafo e Che e dos agentes do Serviço de Inteligência cubano.

No entanto, por trás do aspecto biográfico e da aparência de curiosidade, Che, Memórias de um Ano Secreto costura um discurso ainda mais interessante sobre a construção e a sustentação dos ícones históricos. Quando a narrativa se inicia, o protagonista já é mundialmente conhecido, idolatrado por uns, e temido ou desprezado por outros. A busca pela trajetória do argentino esbarra nos seus indícios, na casa onde morou, nas roupas que vestiu, nas músicas que ouviu. Por esta razão, o espectador se depara com um misto de admiração e temor em cada depoimento, uma espécie de proximidade afetiva combinada com distanciamento em relação à posição de destaque de Che.

“Eu queria sentir o cheiro daquele quarto”, afirma um antigo colaborador do governo cubano, quando se depara com a casa tcheca onde o ídolo viveu. Alguns entrevistados compreendem que Che tenha partido escondido por “sua ousadia, sua radicalidade”, enquanto outros acham improvável que alguém de sua “tenacidade e nível de consciência” tenha passado despercebido durante tanto tempo. Independente da cronologia dos fatos, o que se constrói é um mapa da forte simbologia em torno de Che, tanto em sua presença ao redor do mundo quanto por sua ausência em Cuba. A investigação é entrecortada por cartas, placas comemorativas, fotos sobre os penteados e roupas do Che, incluindo a sua paixão inesperada pelos Beatles, o estilo de suas cuecas, a descoberta dos cigarros ingleses à la James Bond.

Enquanto pesquisa histórica, o documentário de Margarita Hernández surpreende pelos fartos recursos postos à disposição do espectador. Além das entrevistas inéditas, fotos exclusivas e viagens a diversos países, o projeto inclui mapas ilustrativos, visitas a museus, trechos de filmes, imagens poéticas dos lugares por onde Che passou. A investigação exaustiva possui o mérito de não se contentar com primeiras impressões, buscando novas opiniões capazes de confirmar a versão da história. A montagem se esforça para tornar o ritmo ágil e a informação acessível, embora as explicações dos colaboradores ainda deixem as lacunas a respeito do ano secreto. Mesmo assim, a visão macrossocial do evento torna-se clara, agradável, permeada por inesperados momentos de humor.

Devido a suas ambições histórias, Che, Memórias de um Ano Secreto nem sempre evita a linearidade e o peso da cronologia, estabelecendo mais relações de causa e consequência do que reflexões sobre as circunstâncias de cada viagem, cada novo refúgio de Che pelo mundo. O projeto possui uma intenção mais global do que propriamente analítica, em outras palavras, ele está mais aberto a ensinar do que discutir. Ainda assim, oferece um panorama rico em recursos e ciente de seus objetivos.

Filme visto no 28º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, em agosto de 2018.