Críticas AdoroCinema
1,0
Muito ruim
Nada a Perder 2

A crucificação de Edir Macedo

por Bruno Carmelo

Já se passou mais de um ano desde que Nada a Perder se tornou oficialmente a maior bilheteria do cinema brasileiro. Na prática, o resultado não constituiu um recorde de público, pois a Igreja Universal comprou uma quantidade generosa de ingressos para doar aos fiéis. Como nem todos se dirigiram aos cinemas, muitas sessões apresentaram baixa ocupação. A prática não infringe qualquer lei, porém transparece a noção de um recorde fabricado, desprestigiando um sucesso que teria sido, por si só, bastante respeitável: é fácil notar que o filme obteve público expressivo. No entanto, devido aos espectadores-fantasmas, não se pode calcular ao certo quantas pessoas o viram. Passado o tempo de sua exibição em salas, a primeira parte da biografia não se inscreveu num imaginário marcante da cinematografia nacional, ao contrário de verdadeiros fenômenos culturais como Tropa de Elite 2 e Dona Flor e Seus Dois Maridos, dois recordistas anteriores.

Tendo este contexto em mente, Nada a Perder 2 chega aos cinemas sem grandes expectativas quanto ao resultado artístico. Talvez a maior dúvida diga respeito à ânsia pelos números: a Igreja compraria mais uma vez os ingressos do próprio filme? Buscaria superar seus números? Este caso abriria precedente para que outros projetos fizessem o mesmo, propiciando uma série de recordes fictícios? O que a ânsia do gigantismo nos diria sobre a real experiência do cinema atualmente, em tempos de likes, seguidores e números de visualizações? Em especial, o que isto nos diria sobre este projeto de idealização do bispo Edir Macedo? Afinal, trata-se de uma empreitada megalomaníaco, uma extensão lógica para quem controla outros meios de comunicação e ergueu uma obra faraônica no centro de São Paulo. O delírio de grandeza constitui um tema importante do segundo filme.

Isto ocorre porque, enquanto a primeira parte se consagrava à formação de Edir Macedo enquanto pessoa (a infância, a relação com a mãe, a paixão pela esposa), a segunda parte se dedica à formação enquanto líder religioso. No início da trama, o protagonista já é conhecido, respeitado, dono de um império. Os colaboradores do bispo fazem questão de dizer que o dinheiro para a construção do Templo de Salomão provém unicamente dos direitos autorais dos livros vendidos por ele. Já Edir explica que as construções constituem um presente de Deus, sendo portanto facilitadas por ele. Neste filme, Deus é evocado menos em pregações sobre amor ao próximo do que como figura de conveniência: se as acusações contra Edir Macedo foram retiradas, esta seria uma prova do amor divino, se ele enfrenta calúnias diárias, isso implica que está seguindo o caminho de Jesus. Segundo um diálogo, “é o Espírito Santo que dirige a Universal”. Enquanto a primeira parte se pretendia historiográfica, a segunda se torna ainda mais explicitamente ideológica, comparando Edir Macedo a uma figura divina.

Assim, o roteiro elabora a acusação e a defesa ao mesmo tempo. O texto de Emilio Boechat lista diversos escândalos morais e financeiros em que o bispo teria se envolvido, para sugerir que se trata de uma grande campanha orquestrada por opositores na intenção de atacar um “homem de bem”. É difícil “ter todos os poderosos de um país inteiro contra você”, reclama o bispo, e depois se exalta: “Até quanto vou ter que aguentar essa perseguição?”. Na época de fake news e desprezo em relação à ciência e aos fatos, a disputa de narrativa proposta deste projeto sugere que, na verdade, tem-se apenas a palavra dos caluniadores contra a palavra do líder religioso. As provas são banais, literalmente queimadas numa fogueira. Os evangélicos são transformados em grandes vítimas da sociedade, párias do mundo contemporâneo, sendo expulsos de sua casa e atacados nas ruas por adorarem a Edir Macedo, quer dizer, a Deus. Mesmo sugerindo que o bispo nutre respeito por outras religiões, o roteiro retrata os católicos como adversários maldosos e mesquinhos – vide a cena da “gangue de católicos extremistas” que ataca uma pobre moça evangélica na rua, e a figura vilanesca do Monsenhor José Maria (Eduardo Galvão).

Aliás, políticos, policiais, padres e mesmo comissárias de bordo se tornam figuras inimigas, destinadas a reforçar o caráter resiliente de Macedo. A estratégia do discurso é simples: atribuir ao bispo todas as virtudes da Igreja (a construção do Templo de Salomão, as orações com sul-africanos em Soweto), e atribuir aos colaboradores atrapalhados ou mal-intencionados todos os defeitos da Universal (a cena da contagem de dinheiro, o escândalo do chute na estátua de Nossa Senhora). Se algo bom ocorreu, foi graças a Edir Macedo; se algo ruim se passou, ele não teve nada a ver com isso. Os diálogos inclusive encontram uma maneira de fazer os pobres atores dizerem que todos os templos são submetidos a vistoria rigorosa dos bombeiros, garantindo a qualidade do local e o bem-estar dos visitantes (assim mesmo, em tom publicitário) para isentar o protagonista de qualquer responsabilidade na tragédia do teto desabado em Osasco. Se até Deus o absolveu de todos os pecados quando subiu o Monte Sinai (“A brisa que a gente sentiu foi um sinal [da benção divina]”, explica a esposa), quem poderia atacá-lo?

Seria óbvio acusar este filme de propaganda de ser um filme de propaganda – algo que ele, aliás, nunca negou, por ter partido de uma encomenda do próprio bispo. Os imperadores de séculos atrás construíam estátuas em sua honra, mas desde o século XX os líderes mais vaidosos – de todas as crenças e ideologias – utilizam o cinema para erguerem homenagens a si próprios. Este projeto ainda pretende passar a aparência de um documentário, utilizando recortes de jornal e frases de efeito de suposta objetividade (“Não se pode esconder a verdade”, “A história real de Edir Macedo”). Talvez ele fosse mais transparente com seu público e com o cinema se assumisse o caráter de pregação – afinal, o público a que se destina não enxerga qualquer problema neste discurso – e de veículo de sustentação da marca da Igreja. Enquanto a Parte 1 soava um pouco mais estruturada, a Parte 2 se entrega sem meios-termos à beatificação de seu herói.

Desta vez, nem mesmo os quesitos técnicos ajudam muito: os efeitos de montagem para a transição entre cenas são simplórios, a maquiagem se recusa a envelhecer a esposa Ester (Day Mesquita) apesar de envelhecer Edir (Petrônio Gontijo), os movimentos de drone são pouco fluidos, e a estética se torna mais kitsch (a exemplo das sobreposições no monte Sinai e da luz do céu literalmente banhando o rosto do protagonista). A megalomania se traduz numa quantidade superior de tomadas aéreas com milhares de fiéis frequentando os cultos e sugerindo que, se tantas pessoas amam Edir Macedo, ele certamente faz algo certo – o que equivale a coincidir quantidade e qualidade. Enquanto isso, a narrativa se estrutura em torno de uma sucessão de façanhas narradas pelo próprio Edir Macedo numa entrevista. É ele que controla, mesmo diegeticamente, o seu discurso. Nenhum percalço é visto por um ponto de vista que não seja o seu.

A conclusão opera na lógica da meritocracia divina ao sugerir que, se Edir passou por todas essas provações e ainda arrasta multidões aos templos (incluindo a presença de Dilma, Temer, Alckmin, Gugu e Russomanno na abertura do Templo de Salomão), isso significa que Deus o escolheu. O fato de ter se reerguido constituiria uma prova do caráter ungido do pobre bilionário, mártir da missão divina. Dentro da sala de cinema, algumas vozes religiosas reagiam efusivamente aos ataques contra o bispo (“Que absurdo!”) e à sua vitória contra os inimigos (“Bem feito!”). Este é o público, afinal, a quem a obra se destina: os convertidos à causa, que talvez pudessem duvidar por algum momento da idoneidade seu líder. Nada a Perder 2 dificilmente atrairá novos seguidores, mas se contenta em fidelizar a considerável massa de seguidores que apoia a Igreja Universal em seus ditames religiosos, morais e políticos.