Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
Corpo e Alma

Gente que não sabe amar

por Bruno Carmelo

Mária (Alexandra Borbély) e Endre (Morcsányi Géza) são dois funcionários de um abatedouro de gado. Ele é o diretor financeiro, ela acaba de ocupar o cargo de inspetora de qualidade. Em comum, têm a profunda inadequação social: o chefe quase não possui muitos amigos, e carrega traumas como antigas histórias de amor e um braço paralisado. Mária não conversa com ninguém, recusa-se a tocar outras pessoas ou tratá-las com familiaridade, e manifesta traços obsessivos-compulsivos.

On Body and Soul constitui um filme romântico, crente na ideia de que toda pessoa ferida e estranha está à espera de outra pessoa ferida e estranha. A intenção da narrativa, previsível e árdua, é aproximar duas pessoas que não sabem amar. Ele, porque já amou demais no passado e evita se machucar novamente. Ela, porque jamais se aproximou de quem quer que seja, sendo considerada pelos colegas ao redor como uma figura fria e arrogante.

Mas Mária quer, e muito, se apaixonar. Interpretada por Borbély como um tipo robótico, incapaz da mínima expressão facial, esta personagem pouco simpática talvez conquiste o espectador por suas tentativas tragicômicas de se adequar à vida sensível: ela busca freneticamente músicas que a façam sentir algo, espreme um purê de batatas quentes na mão, compra um bicho de pelúcia que possa lhe despertar alguma ternura. As cenas têm a mesma graça de ver o Exterminador do Futuro tentando esboçar um sorriso: elas divertem por complicar uma tarefa que nos parece simples, natural.

A melhor escolha de roteiro da diretora Ildikó Enyedi é aproximar a dupla no plano lúdico. Os dois passam curiosamente a ter o mesmo sonho à noite: ela se imagina como cerva, e ele como veado, numa paisagem coberta de neve. Nada acontece nesse cenário, exceto pela aproximação dos dois únicos animais presentes. Nos sonhos, alterados todas as noites e sentidos simultaneamente por ambos, eles não precisam se preocupar em corresponder às regras sociais: reduzidos à condição de bichos, podem se farejar de modo instintivo. A ausência de racionalidade torna-se um horizonte invejável para estes desajustados emocionais.

No plano imagético, On Body and Soul revela-se discreto, funcional. O sonho possui uma beleza austera, mas as cenas passadas no tempo real são cruéis (em especial os momentos de abate do gado), em cores pastéis, pouco agradáveis. Enyedi filma de modo banal vidas banais, colocando Endre e Mária em cenários frios, pouco convidativos. Os close-ups nos rostos reforçam a intimidade que os personagens evitam: é como se a câmera forçasse a proximidade recusada pelos dois, sublinhando o conforto já evidente nas atuações.

Previsível na intenção de juntar esses “emotivos anônimos” (ou seriam apáticos anônimos), o filme encontra na ostensiva estranheza o seu interesse, mas também a sua limitação: os dois personagens são definidos por pouco mais que suas esquisitices. Certamente, este é um cinema mais áspero do que a média de produções indies de Sundance, que costumam caminhar para um otimismo forçado, mas a aproximação de Mária e Endre não deixa de soar um tanto triste: eles se unem menos por escolha do que por instinto de sobrevivência. Conhecendo o final que levam os animais sem humanidade – o abate – eles são obrigados a se adequar à norma.

Há algo perverso na exposição dos marginais com um ponto de vista externo; como se ríssemos e tivéssemos piedade deles pela inferioridade que apresentam em relação aos seres humanos comuns (os colegas de trabalho, o espectador). A lúdica compaixão de On Body and Soul é acompanhada de um amargo revés: o paternalismo em relação aos protagonistas, beirando o desprezo.

Filme visto no 67º Festival de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2017.