Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Entre Dos Aguas

Reflexos do tempo

por Barbara Demerov

Com a criação de seu alter-ego Antoine Doinel a partir de 1959 no cinema, François Truffaut tinha em mãos um personagem cujo universo ia se desenvolvendo com o auxílio do passar dos anos. O eixo daqueles filmes é o tempo, e pode-se dizer que o mesmo acontece no caso dos irmãos Romero - apesar de não existir cinco filmes sobre suas histórias, mas somente dois. Em 2006, La Leyenda del Tempo introduziu a dupla Isra e Cheíto e, agora, Entre Dos Aguas retoma suas trajetórias diante do que os últimos anos lhe proporcionaram. O diretor Isaki Lacuesta aproveita o fato dos irmãos serem "não atores" para criar uma docuficção que mescla uma carga dramática que consiste de suas próprias vidas, somada com uma narrativa fluida.

Com flashbacks do filme de 2006 que conversam perfeitamente com o que nos é apresentado na história atual, por mais que o espectador possa não ter conhecimento mais amplo do que se passou previamente, Entre Dus Aguas é conciso no sentido de entregar uma história humana, com desdobramentos realistas e que expõem majoritariamente as dificuldades de Isra, que recentemente saiu da prisão. Sua dor ao retornar à sua família e ser recebido com frieza pela esposa, além de palpável, é o mote do filme - aliado ao intenso relacionamento com seu irmão, que trabalha na Marinha mas sonha em abrir sua própria padaria.

Todos os recortes apresentados no longa (que vão do trabalho com o tráfico de drogas até as questões mais pessoais que envolvem suas respectivas famílias) transformam a trivialidade em algo especial. As cicatrizes que permanecem em Isra e Cheíto são expostas de forma gradual, ao mesmo tempo em que seus conflitos também vão se aflorando. Com a perda do pai em uma situação drástica, Isra é o que ainda mais sofre com a situação, e Lacuesta filma cada expressão facial e corporal de sua dupla com o respeito necessário, explorando a linha tênue entre ficção e documentário.

A força destes personagens anônimos e universais é tão bem explorada quanto suas fraquezas. Da marcante cena que abre o longa (a observação do parto de sua filha seguida da volta à prisão) até a decisão de Isra em voltar à estaca zero no submundo das drogas, boa parte das escolhas e consequências narrativas se dão de forma intensa e inesperada - da mesma forma que existam diversos momentos que mostrem a cumplicidade entre irmãos até mesmo quando apenas nadam juntos. A obscuridade das escolhas que são feitas por Isra une-se ao senso de juízo de Cheíto, resultando em uma boa parcela de dramaticidade na história.

É louvável quando não é incômodo o fato de não sabermos exatamente o que pode ser ficção e o que pode ser absoluta realidade dentro de uma história como a de Entre Dos Águas, mas tanto Lacuesta quanto seu elenco exprimem um diálogo convincente sobre estar à margem de uma situação que pode ser vista como uma prisão. A ideia de simplesmente observar estas pessoas automaticamente já expressa um estilo mais contemplativo ao filme, porém, em nenhum momento ele prejudica a imersão ou a reflexão sobre vidas que são movidas por seus sonhos, mas que não conseguem se desprender da realidade.

Filme visto no 8º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba, em junho de 2019.