Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
O Bar Luva Dourada

Grotesco

por Bruno Carmelo

De que maneira a comédia pode ser uma ferramenta crítica? Esta seria uma pergunta fundamental diante de um filme como The Golden Glove. Para representar o chocante caso real de um assassino em série que estuprou e esquartejou dezenas de mulheres nos anos 1970, o diretor Fatih Akin decidiu construir não um drama, não um suspense, e sim uma perturbadora comédia. Em que medida essa linguagem se acomoda a uma tragédia real? Seria desrespeitoso com a memória das vítimas rir do sofrimento alheio?

Vale lembrar que a comédia sempre foi historicamente vista como inferior à tragédia. Hoje, o senso comum associa o humor ao escapismo, à fuga de uma realidade dolorosa rumo um mundo de ilusões. Ora, o que acontece quando uma realidade particularmente dolorosa se une ao humor? A primeira precaução ética do diretor se encontra no tom grotesco. The Golden Glove – nome do bar frequentado pelo protagonista – é um terreno de pessoas feias, sujas, desdentadas, bêbadas, ignoradas pelo resto da população. Fotografias apresentadas ao final da projeção permitem estabelecer similaridades, mas também ressaltam as diferenças: Akin tornou as figuras reais muito mais asquerosas do que nos fatos.

Esta é, portanto, uma história de monstros, no qual todas as figuras são igualmente ridicularizadas. As mulheres, patéticas, entregam-se ao carrasco sem contestação. Este, atrapalhado, tem seu sexo exposto, seu corpo sujo e seus dentes amarelos reforçados pela direção de arte. O filme faz questão de sugerir uma explicação às pulsões doentias de Fritz Honka (Jonas Dassler, coberto de próteses): ele é rejeitado pelas mulheres bonitas, ignorado pela família, e cronicamente impotente. Incapaz de penetrar as poucas mulheres interessadas nele, atribui a culpa às parceiras e esquarteja-as dentro de casa. Cada uma destas cenas é retratada com atenção às peles suadas, à sujeira embaixo das unhas, às cuecas e calcinhas encardidas. A imundície física se confunde com imundície moral.

Mas não seria antiético atribuir às vítimas o mesmo tratamento imagético do carrasco? Não seria melhor ridicularizar o assassino, mas preservar as mulheres atacadas? O filme faz questão de não transformar Fritz num vilão cativante, mas tampouco observa as mulheres de maneira piedosa. O olhar moralizante cede espaço a uma abordagem descritiva: o roteiro se resume a uma sequência de mulheres que entram e saem do apartamento de Fritz, movidas pela promessa de álcool e um pouco de afeto. Ambos estão se iludindo neste jogo, embora o homem seja o único culpado pelos crimes. Felizmente, a narrativa faz questão de incluir mulheres combativas, que também colocam o atrapalhado adversário em seu devido lugar.

Em paralelo, The Golden Glove ignora os prazeres do suspense e da investigação: não pressentimos a polícia perseguindo o assassino, e nada parece frear os impulsos violentos de Fritz além da resistência das próprias mulheres. O único elemento que permite ao criminoso ficar impune durante tanto tempo é a falta de interesse dos demais: ninguém se importa com este homem sem laços sociais, nem mesmo com suas vítimas. O escárnio também é aquele da sociedade, que permite a existência de pessoas invisíveis, menosprezadas – vide a cena do adolescente burguês dentro do bar, destoando por ser uma figura de poder dentro de um refúgio de marginais.

A adesão do público dependerá da capacidade de interpretar o grotesco como figura de estilo, como forma de distanciamento em relação aos atos. Em nenhum momento os atos cometidos parecem sedutores, e os corpos tampouco são erotizados. Ao buscar o asco e a monstruosidade, o diretor utiliza o riso para o desconforto do espectador – uma forma de transformá-lo em sujeito ativo da comunicação, impedindo que caia no conforto escapista. Em última instância, trata-se de um convite à reflexão.

Isso reforça o fato de que o tema, em si, não carrega valor algum em dissociação à sua forma. O estupro, a morte e o assassinato podem ser representados como quaisquer outros temas: o discurso emitido a partir destas temáticas será compreendido justamente através da estética. Akin parte para a vertigem: coloca a sua câmera o mais perto possível das agressões para gerar a máxima repulsa ao teatro de horrores dentro do minúsculo apartamento imundo, coberto de fotos pornográficas e bonecas velhas. Somos convidados a ver, mas não a aderir.

Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019.