Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
Quem Vai Me Amar Agora?

A moral do HIV

por Bruno Carmelo

O primeiro trauma do israelense Saar foi admitir à família religiosa a sua homossexualidade. O segundo trauma veio ao revelar a soropositividade. Sem poder suportar a pressão dos pais e irmãos, ele se muda para Londres, onde integra a comunidade LGBT local. Mas a família ainda o considera irresponsável por ter contraído o vírus, enquanto o próprio Saar acredita ter sido contaminado em represália à vida de drogas e sexo grupal que mantinha com o ex-namorado.

O documentário Quem Vai Me Amar Agora? decide mostrar como a condição do protagonista adquire um peso moral. O soropositivo poderia ser visto como um paciente crônico qualquer, necessitando tomar medicamentos pelo resto da vida. Mas ao contrário de um diabético ou da vítima da síndrome de Parkinson, que não consideradas culpadas de suas condições, Saar é visto como alguém que “provocou isso para si mesmo”, nas palavras de um irmão. O vírus torna-se uma punição pela homossexualidade, por ter fugido de Israel e por não seguir as leis da religião judaica.

Os diretores Barak Heymann e Tomer Heymann retratam a retórica típica do pensamento religioso, inclinado a ver nas manifestações da natureza – apenas aquelas que convêm, é claro – uma mensagem divina. A família de Saar é ignorante quanto à homossexualidade (o pai pergunta ao filho quem deve ajudar na casa quando dois homens estão juntos) e quanto à doença (o irmão tem medo que seus filhos pequenos sejam contaminados através do toque do tio soropositivo). Não estamos no terreno da discussão lógica, nem médica, e sim na retórica do medo: Saar é percebido como alguém perigoso.

Curiosamente, os pais descrevem a si mesmos como as verdadeiras vítimas do HIV. É Saar quem convive com o vírus, é ele que enfrenta os fortes efeitos colaterais dos medicamentos, mas os pais reclamam de não saberem como agir, como dizer aos outros, como calcular o tempo de vida do filho. Os verdadeiros afetados, em seu ponto de vista, são eles mesmos. O adulto exilado sofre portanto uma nova chaga: a responsabilidade pelo sofrimento alheio. Felizmente, os cineastas não buscam as lágrimas do espectador: apesar de uma ou outra trilha sonora mais sentimental, o documentário prefere a observação à compaixão.

Nos aspectos técnicos, Quem Vai Me Amar Agora? apresenta recursos muito simples. Os diretores abusam dos close-ups no protagonista, em captação digital de qualidade modesta e fotografia pouco contrastada. A estética se minimiza para privilegiar o discurso: é visível que a dupla estava mais preocupada em captar conversas interessantes do que encontrar imagens que transmitissem a dor de Saar. A dinâmica também é limitada, alternando entre conversas com os pais e inúmeras cenas do personagem num coral gay, cantando e dançando.

É curioso que os irmãos Heymann não tenham procurado retratar outra esfera do conflito de Saar para além das relações familiares. Sabemos que ele trabalha numa Apple Store, mas nunca o vemos trabalhando; sabemos que teve dois namorados no passado, mas desconhecemos suas relações afetivas nos últimos onze anos de vida, desde que contraiu o vírus. O filme se concentra de modo eficaz no embate religioso, mas negligencia outras partes importantes da vida do biografado. Mesmo assim, proporciona um retrato modesto, porém empático, sobre um homem lutando para conviver com dois problemas crônicos: o vírus e o preconceito.

Filme visto no 24º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, em novembro de 2016.