Críticas AdoroCinema
5,0
Obra-prima
Doméstica

Crônica de um novo Brasil

por Bruno Carmelo

Alguns dos melhores documentários brasileiros recentes buscaram na relação entrevistador-entrevistado a equivalência do olhar. Em Serras da Desordem, Andrea Tonacci dava aos índios a câmera e deixava que se retratassem; em Pacific, Marcelo Pedroso se apropriava de imagens previamente filmadas por passageiros de um cruzeiro de luxo. O olhar do diretor estava presente, como não poderia deixar de estar, pela seleção e orquestração das imagens na montagem. Doméstica, o belíssimo documentário de Gabriel Mascaro, dá um passo adiante e fornece a câmera não às empregas domésticas, mas aos filhos dos patrões.

Este recurso é bastante astucioso, porque permite representar o sistema patrão-empregado do qual os jovens também fazem parte. Melhor do que pedir aos empregadores para falarem de suas funcionárias (o que provavelmente daria origem a um discurso politicamente correto), ele pede aos adolescentes, que cresceram com empregadas dentro de casa, para retratarem sua visão pessoal do capitalismo à brasileira. Neste sentido, o título “Doméstica” indica mais do que a atividade de empregada doméstica, aplicando-se também aos sentidos do adjetivo “doméstico”, sobre algo que se passa dentro do lar. Os confrontos entre classes altas e baixas, patrões e empregados, vida pública e privada, trabalho e lazer são alguns dos complexos temas deste filme, que Mascaro domina com maestria e delicadeza.

O grande mérito deste documentário é adotar uma clara postura política sem ser acusador, demagogo, sem tratar as domésticas como vítimas, nem heroínas. O discurso funciona em uma lógica dialética, construindo significado a partir da combinação de imagens. Como já tinha mostrado em Um Lugar ao Sol, o diretor tem um olhar apurado para frases e cenas que ilustram, sem que o entrevistado perceba, o tema do documentário. É ótimo o momento em que uma das personagens dirige um carro de luxo, enquanto ouve uma canção popular na rádio e se comove, esquecendo a presença da câmera. Em outra passagem, uma empregada diz ter achado que judeus eram malvados, por ter sido “judiada” por um deles. Os vícios de linguagem e os confrontos entre popular e erudito são ilustrados de maneira divertida e respeitosa.

A produção também toma cuidado para representar a diversidade da profissão. Entram em cena faxineiros homens, ou domésticas pobres de famílias igualmente pobres. Doméstica tem um roteiro bem delineado, com preocupações estéticas, discursivas e morais visíveis a cada plano. Apesar do humor, nascido da intimidade entre os adolescentes e as domésticas, transparece o incômodo inerente à profissão (a tradicional frase “Ela é como se fosse da família” aparece nas falas dos garotos e garotas), assim como a gratidão amarga das trabalhadoras, que afinal estão recebendo salário em troca do serviço que prestam, como qualquer outro profissional, mas se veem na obrigação de agradecer também pelo carinho, pelo lar onde moram e pelo próprio fato de terem um emprego.

Na época em que os direitos trabalhistas das empregadas domésticas ainda são vistos com desprezo pela elite (vide os comentários de Danuza Leão, ou ainda a história do “gagau” na Internet), Doméstica percebe que suas simples imagens caseiras contêm muito mais do que o retrato de uma profissão: elas funcionam como metáfora poderosa de um país em que o desenvolvimento econômico não garantiu diversos direitos sociais fundamentais.