Críticas AdoroCinema
2,0
Fraco
Quebradeiras

Mulher-paisagem

por Bruno Carmelo

Quando se fala em documentários etnográficos, uma ideia que vem à cabeça é a da apreensão do real, a do diretor que tenta capturar uma forma específica de sociedade e mostrá-la nos cinemas com a mínima interferência da própria direção. Mas este não é o caso de Quebradeiras, que trabalha em um registro praticamente oposto.

No filme, o que determina a imagem não é a vida das quebradeiras de coco de babaçu, e sim a estética da direção. Evaldo Mocarzel contorce sua câmera em todos os sentidos: coloca-a dentro do riacho, no alto dos coqueiros, entre os pés das mulheres, dentro de uma caldeira, no fundo de um poço, entre as linhas de uma rede. Não há espontaneidade, naturalismo: as imagens têm o intuito principal de serem belas.

Sem espontaneidade possível, é muito claro que as quebradeiras do título recriam suas ações cotidianas especialmente para que o diretor consiga compor o ângulo desejado, com a iluminação cuidadosamente determinada. Neste caso, a linguagem cinematográfica se sobrepõe ao tema, e não o contrário, como costuma ser o caso da maioria dos documentários.

A ética da reconstituição não é nova no cinema, muito pelo contrário: um dos primeiros documentários antropológicos da história, Nanook, O Esquimó, de 1922, procedia da mesma maneira: o diretor Robert J. Flaherty pedia aos esquimós para representarem diante das câmeras suas atividades cotidianas. Na época, o filme foi polêmico por ser considerado falso e manipulado, e a mesma dúvida ética persiste hoje, 90 anos mais tarde: embora toda forma de cinema implique um mínimo de manipulação, a reconstituição de atividades diante da câmera não parece ser a melhor maneira de retratar a realidade de um povo.

Este não é o único aspecto de Quebradeiras que faz pensar a um filme de outros tempos. A montagem de efeitos, que acelera nas cenas de dança ou compara os seios das mulheres aos cocos, é digna do cinema soviético dos anos 1920, aquele que foi inovador em sua época, mas que parece ingênuo hoje em dia. Enquanto linguagem cinematográfica, este filme brasileiro é datado, sem sequer refletir sobre estas escolhas estéticas, adotando-as como se fossem novas. O som vem comprovar esta tese, ao retirar os ruídos naturais e substitui-los por um xilofone distorcido com ares transcendentais.

Mas o grande problema ético desta produção é mesmo a busca pela beleza a qualquer preço, levando ao fetichismo da alteridade, à objetificação do outro. De fato, as quebradeiras nunca se tornam sujeitos do filme, elas nunca têm vontades, conflitos, complexidades. O risco de desaparecimento de sua atividade, presente na sinopse do filme, sequer é visto em telas.

Logicamente, o problema não é a beleza em si. Grandes documentaristas como Raymond Depardon já fizeram documentários excelentes (em 35mm, inclusive) como A Vida Moderna (2008), com notável preocupação estética. Mas mesmo neste caso, o diretor deixava sua câmera ligada e captava as longas conversas com os agricultores para descobrir, enquanto filmava, os momentos interessantes que acabariam entrando no filme. Le Quattro Volte (2010) de Michelangelo Frammartino também esperava vir da realidade o interesse e a beleza de seu filme. Mas Mocarzel filma essas mulheres como filma os coqueiros, como se fossem parte da paisagem, meros elementos estéticos para comporem o quadro, de preferência nos terços exatos da imagem, ou em contraluz.

Fica a impressão de que o diretor sequer falou com essas mulheres, sequer conversou com elas, filmando-as sempre a uns cinco metros de distância, por entre objetos ou árvores, sem querer perturbar. É louvável que a produção evite a narração, os depoimentos, as inscrições na tela e outras ferramentas pedagógicas, mas o desinteresse do diretor em dar voz ou personalidade às quebradeiras constitui um imenso problema em um documentário etnográfico. O público sairá de uma sessão de Quebradeiras sem saber nada sobre a prática dessas mulheres, mas ciente de que seus corpos nus brilham muito bem à luz do sol.