Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
Americano

Dura herança

por Bruno Carmelo

"Meus dois pais fizeram filmes, eu não posso ignorar isso". Numa entrevista sobre Americano, o diretor Mathieu Demy admite que, ao invés de ocultar sua prestigiosa filiação, ele preferiu assumi-la totalmente em seu filme de estreia, transformando a obra numa "auto ficção". Afinal, Demy é filho de Jacques Demy (Os Guarda-Chuvas do Amor, Duas Garotas Românticas) e Agnès Varda (Cléo das 5 às 7), dois ícones da ala mais subversiva da Nouvelle Vague francesa. Ele ficou conhecido pelos filmes musicais e fantasistas; ela, pela transição entre documentário e ficção.

Americano aborda a herança familiar tanto de Demy, diretor, quanto de Martin, personagem interpretado por ele mesmo. A narrativa assume a mistura entre ficção e realidade. O primeiro elemento desta união é a presença de uma dezena de fragmentos do filme Documentira (1981), de Agnès Varda, inspirado na vida real que a diretora levava com o filho pequeno em Los Angeles. O garoto era interpretado pelo próprio Mathieu Demy, já no papel de Martin. Este personagem, aliás, marca sua trajetória no cinema enquanto ator: Demy interpreta o mesmo garoto logo após o filme, numa série de televisão francesa.

Se um dos alicerces é a mãe, o pai encontra-se representado pelo personagem de Lola. Tanto no filme Lola, dirigido por Jacques Demy em 1961, quando em Americano, a personagem feminina principal é uma prostituta perseguida por um amigo de infância. Assim, Mathieu Demy (no papel de Martin), Jacques Demy (representado por Lola) e Agnès Varda (representada por seu filme) compõem o trio familiar restituído nesta história. Não é por acaso que Mathieu Demy buscou compor o elenco com outros grandes "filhos de famosos", como Geraldine Chaplin, filha de Charles Chaplin, e Chiara Mastroianni, filha de Catherine Deneuve e Marcello Mastroianni.

A narrativa gira em torno de Martin, homem com relações afetivas complexas com os pais, que descobre a morte súbita de sua mãe. Incapaz de lidar com o luto, ele parte em busca da amiga de infância, Lola, uma dançarina de cabaré que lhe substituiu simbolicamente após o divórcio dos pais: quando Martin foi viver com o pai na França, deixando sua mãe nos Estados Unidos, esta passou a tratar Lola como sua própria filha.

A obsessão do protagonista por Lola em pleno luto materno é um tanto mal justificada nesta história, e talvez o espectador tenha que recorrer a uma certa criatividade psicanalítica para tornar a trama coerente (talvez Martin veja em Lola um alter-ego de si mesmo, uma oportunidade de corrigir o passado). De qualquer modo, a fuga dos pais, da herança e da história pessoal é feita em direção a Tijuana, cidade na fronteira entre os Estados Unidos e o México. Este local é apresentado de maneira assumidamente fantasmática, fetichizada, onde as mulheres são prostitutas e os homens, ladrões.

Como já poderia se esperar de um road movie como este, os ambientes e deslocamentos recebem uma atenção especial, mesmo que sejam trabalhados com simbologias simples – o que alguns poderiam chamar de óbvias. A imagem de Martin é fragmentada em espelhos, cortada pelo enquadramento, enquanto a música se compõe de duas partes: os hits eletrônicos e repetitivos, para retratar a obsessão do personagem, e a música que Georges Delerue havia composto para Documentira.

Alguns críticos reclamaram, com razão, que Americano é baseado demais na própria trajetória de Mathieu Demy, fazendo da obra algo egocêntrico, narcisista, uma espécie de acerto de contas pessoal do diretor com seu passado - uma auto-terapia. É verdade também que Salma Hayek é mais bem explorada em seus dotes físicos do que dramáticos, e que a narrativa tem certas dificuldades a superar a mecânica "Martin procura Lola – Lola rejeita-o – Martin busca-a novamente – Ela o rejeita mais uma vez...".

Talvez este filme não seja uma obra-prima da "arte de contar histórias", com seu roteiro truncado e com o uso excessivo de referências. Mas também é possível que seu interesse encontre-se em outros aspectos. O primeiro deles diz respeito ao fato de o diretor assumir as referências ao cinema de seus pais, ao mesmo tempo em que procura uma marca pessoal – a direção de Mathieu Demy não se parece nem com o estilo documentário da mãe, nem com as fantasias multicoloridas do pai.

Além disso, apesar da trajetória heterogênea, Americano consegue desenvolver uma ambientação complexa, entre o real e o imaginário, fazendo um uso interessante de música, luz e enquadramentos. Estes fatores, para um diretor iniciante que tem que lidar com uma herança tão pesada quanto a sua, são méritos consideráveis.