Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Shame

Triste obsessão

por Bruno Carmelo

Shame inicia-se com um corpo nu. Michael Fassbender desfila pelos corredores de sua casa. Ele vai ao banheiro, urina, depois caminha em direção à câmera, em cena de nu frontal que revela o sexo ao mesmo tempo em que esconde o rosto. A imagem nunca abandona este corpo, mesmo quando está deitado na cama, com aspecto cadavérico, sob uma luz esbranquiçada. Este início resume bem o conceito do filme: tratar de um corpo, de sua nudez, sem qualquer fetiche ou glamorização.

Aliás, pode-se dizer que poucas vezes uma produção com tantas cenas de sexo foi tão pouco erótica ou excitante. O ato sexual, em Shame, é mostrado de maneira incômoda, como um martírio: o protagonista Brandon, obcecado por sexo, entrega-se às mulheres que cruzam seu caminho como um animal que caminha ao abatedouro. Engana-se quem pensa que a vida deste Don Juan é um paraíso: o rico publicitário é prisioneiro dos próprios desejos, refém de suas pulsões. O sexo não é consequência do afeto ou da sedução, apenas uma necessidade fisiológica a ser saciada regularmente, como a sede ou a fome.

À obsessão do protagonista adiciona-se outra, paralela, do realizador. Steve McQueen, artista plástico que havia iniciado sua carreira cinematográfica com Hunger, retoma o tema do martírio corporal e repete a parceria com Fassbender. Para fazer da compulsão o seu tema, McQueen não relata nenhuma cena que não tenha conotação sexual: quando Brandon vai ao banheiro do trabalho, é sempre para se masturbar; quando uma garota o encontra, eles necessariamente transam, quando ele liga o computador, a página acessada tem invariavelmente um conteúdo pornográfico. O filme mergulha o espectador na vida e na doença do personagem, de modo que não vemos nada além da repetição típica do mecanismo obsessivo: assim como o Brandon, a imagem só pensa, mostra e reflete o sexo.

A entrada da irmã do personagem na história poderia apresentar um contraponto simétrico (se ela fosse conservadora ou pudica, talvez), mas ele apenas adiciona um ponto de vista para tornar mais complexo o tema da vergonha, escancarada pelo título. Sissy, a irmã, interpretada magistralmente por Carey Mulligan, também tem uma dependência, e uma compulsão, mas no caso dela, o problema é de ordem afetiva. Pela natureza volátil e possessiva de Sissy, e pelo caráter sexualizado de Brandon, nenhum dos dois consegue ter uma relação amorosa estável, saudável – vide a triste cena em que Brandon não é capaz de transar com a gentil colega de trabalho, saciando-se apenas com uma prostituta.

A convivência entre Sissy e Brandon não poderia deixar de ser explosiva, e o roteiro explora este confronto às últimas consequências, numa cena que muitos interpretaram como uma clara insinuação incestuosa... De qualquer modo, Shame é construído como uma gradação: os personagens estão condenados a certo comportamento, que será repetido com frequência cada vez maior, em intensidade cada vez maior. Este drama cruel e sem lágrimas prefere a sensação de incômodo, a frontalidade da imagem e do tema como alternativa à piedade. Sem sentimentalismo nem apelo ao erotismo, Shame compõe uma imagem triste e cruel do sexo, como o cinema raramente havia ousado apresentar.