Críticas AdoroCinema
2,5
Regular
Um Espião e Meio

Licença preconceito com ganho de causa

por Renato Hermsdorff

O que é, o que é? (ou “quem é, quem é?”): ele é histriônico, faz piada com a minoria a que pertence, a crítica torce o nariz para ele e, mesmo assim, seus filmes atraem milhões às salas de cinema? Na verdade, há duas respostas corretas para este enigma, mas considerando que estamos falando de Hollywood, Leandro Hassum está tecnicamente desclassificado.

Tal qual o comediante brasileiro, Kevin Hart (sim, bingo!) aposta na mesma fórmula para atrair público aos filmes que protagoniza. É a premissa, até compreensível, de que somente negros podem fazer piadas racistas (só gays podem contar anedotas homofóbicas, pessoas com sobrepeso sobre gordos, ... – e por aí vai), afinal, cada um sabe onde o calo aperta. O curioso é que essa “licença preconceito”, aqui, funciona.

Antes, a história: Um Espião e Meio acompanha a união de forças de Calvin Joyner (Hart) e Bob Stone (Dwayne Johnson). Na assustadora fase da adolescência, o primeiro era o popular da escola, promissor estudante admirado não só pelas notas, quanto por suas habilidades esportivas; já o segundo é a verdadeira piñata de bullying da turma. Vinte anos depois, no entanto, as posições se invertem, e Bob, hoje agente da CIA, vai precisar da ajuda do contador (!) Calvin para desbaratar um esquema terrorista.

Assim, Central Intelligence (no original) aproveita o fluxo das comédias de ação que têm feito relativo sucesso nos cinemas atualmente – pendendo muito mais para A Espiã que Sabia de Menos do que para Kingsman - Serviço Secreto (note que a palavra “comédia” precede “ação”). A arma não tão secreta da produção dirigida por Rawson Marshall Thurber (Com a Bola Toda) é o humor de causa politicamente incorreto e autodepreciativo de Hart.

Quando Bob, na tentativa de elogiar Calvin, diz que ele está parecendo um “Will Smith negro”, o pensamento flui na linha: “Mas o Will Smith não é negro?”/ “Será que é porque ele faz papel ‘de branco’?”/ “O que é papel ‘de branco’?”/ “Então não há tantos papéis bons para os negros em Hollywood?”. E aí temos a almejada combinação de entretenimento e reflexão, que agrada tanto o público quanto a crítica. Conclua você.

O roteiro do filme – comandado pelo ator Ike Barinholtz, o Capitão Griggs de Esquadrão Suicida – é exitoso ao surfar outra onda de sucesso (essa, permanente), que é a nostalgia, sobretudo dos anos 1980 (hello, Stranger Things!) As referências (Gatinhas & Gatões!) funcionam na embocadura da dupla por conta do viés inusitado. Ainda: não são poucos os cacos que Hart insere – improvisos, como mostram os erros de gravação que acompanham os créditos finais – e conferem um frescor às tretas da contemporaneidade (sobra para Hércules, Taylor Swift, até para o próprio The Rock).

Isso posto, o problema maior do filme é o “mais do mesmo” mesmo. Estão lá a apresentação didática que subestima a inteligência do espectador; o coadjuvante apelativo bobalhão (papel irritante que ficou com Ryan Hansen, como companheiro de trabalho de Calvin); as reviravoltas previsíveis; e a mensagem pretensamente edificante acima do tom da experiência. Tome “formulinha”!

Mas Hart, o ator mais bem pago do mundo segundo a revista Forbes – curiosamente, "The Rock" vem na sequência –, ao usar as entrelinhas, consegue passar o seu recado anti-bullying de forma convincente. Pelo menos, a favor dos afrodescendentes, porque para os contadores... Resta saber como Hassum, agora magro, vai se comportar daqui pra frente em seus filmes.