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    Watchmen 1x06: A Verdadeira História do Grande Herói Americano

    Ou: pelo direito do oprimido de sentir raiva.

    Atenção! Contém SPOILERS do episódio 6 da 1ª temporada de Watchmen, “This Extraordinary Being”

    Aquele em que você finalmente entende o que está acontecendo.

    Durante os cinco primeiros episódios de Watchmen, o público se viu bastante confuso e, muitas vezes, sem conseguir decifrar com clareza aquilo de que estava diante. Das poucas certezas que existem para o público (e, justiça seja feita, também para a crítica) no curso de assistir à temporada ainda não finalizada de uma série, a que já podia ser feita a respeito de Watchmen é que definitivamente estávamos de frente para um produto singular, uma extensão da HQ de Alan MooreDave Gibbons pautada conforme o contexto social e político de um 2019 extremamente polarizado. Agora, faltando apenas três episódios para o final da temporada, Watchmen reafirma a sua posição como um dos dramas mais pertinentes do ano e prova que Damon Lindelof sabia desde o início o que estava fazendo.

    Indo contra as expectativas, o episódio 6 começa com uma cena da “série dentro da série”, American Hero Story. A cena em questão traz o Justiça Encapuzada sendo interrogado por dois investigadores da polícia, que o ameaçam com sua orientação sexual para que ele tire a máscara. A História nos conta que o Justiça Encapuzada jamais revelou sua identidade mas, aqui, na “adaptação” feita por American Hero Story, ele tira a máscara, um homem branco de olhos verdes com muita raiva dentro de si.

    Mas Watchmen está longe de ser American Hero Story e, se há algo que quer dizer com essa “série dentro da série”, é que não pretende e jamais pretendeu ser uma adaptação tão maniqueísta de personagens tão complexos quanto aqueles idealizados por Moore e Gibbons. De fato, o que ela está tentando transmitir é justamente a ideia oposta. Por isso, quando Angela (Regina King) começa a sentir os efeitos da Nostalgia, os comprimidos que ingeriu no episódio 5 contendo todas as memórias de seu avô, William Reeves (Louis Gossett Jr.), e mergulha na vida deste homem que nunca conheceu verdadeiramente, somos levados a uma viagem digna de disputar o título de ser uma das melhores horas de qualquer produção assinada por Damon Lindelof.

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    O que vemos em tela quando Angela começa a confundir sua própria identidade com a identidade do avô é o produto de uma conclusão relativamente simples, mas eficaz na necessária distinção entre o que é memória e o que são acontecimentos reais e presentes. Toda a passagem que se apresenta como a aguardada história de origem de William acontece em preto e branco, em uma estética que se inspira na Nova Hollywood apenas para reverter qualquer estereótipo idealizado de um período historicamente controverso. 

    É neste sentido que a narrativa não hesita em denunciar uma força policial preconceituosa e trazer a figura de Samuel Battle para a história. Ele foi o primeiro policial negro da NYPD — e, no episódio, é quem coloca o distintivo no jovem Will. As complicadas relações interpessoais e a forma como nada é escancarado, mas todos os personagens são igualmente complexos e moralmente dúbios traz para as telas talvez a característica mais intrínseca da obra original. Há uma tragédia escancarada na história de origem do Justiça Encapuzada, uma que estava igualmente de braços abertos o tempo todo na série, desde o primeiro episódio.

    Mas como as melhores reviravoltas e construções da Graphic Novel, o que a série estava escondendo diante de nossos olhos é mais do que uma reviravolta que estabelece uma conexão com algo que já conhecíamos. É uma jogada estratégica, no melhor sentido do termo, que de uma vez por todas justifica a existência dessa história dentro do universo de Moore e Gibbons; é como se finalmente Watchmen completasse o círculo completo. O homem raivoso aos seus 102 anos de idade que, de alguma forma, conseguiu pendurar o chefe de polícia (Chefe Judd, Don Johnson) em uma árvore e matá-lo enforcado apesar de estar em uma cadeira de rodas tem um motivo para nunca entregar de verdade quem ele é: é apenas como ele precisou ser, desde sempre.

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    Tampouco o fato de William ser o Justiça Encapuzada serve simplesmente para fazer com que a conexão com a história das HQs se justifique. No fim das contas, é a derradeira mensagem que Lindelof está buscando com a sua própria Watchmen. Para o mundo que conheceu o Justiça Encapuzada, William Reeves precisava ser um homem branco, escondendo sua sexualidade e suas origens sob uma maquiagem ao redor dos olhos para que ninguém descobrisse que ele era negro; mais do que isso, William é, para o bem ou para o mal, o produto de uma coletividade problemática, o verdadeiro resultado da máxima do “nós vivemos em uma sociedade”. Ele é a maior representação dos excluídos, mas justamente por ter se tornado uma figura tão representativa em uma suposta luta contra a injustiça, é proibido de travar a luta que considera sua e em que acredita.

    E essa é a grande sacada do time liderado por Lindelof ao transformar o primeiro justiceiro em um herói negro, algo nunca estabelecido na HQ original justamente porque o Justiça Encapuzada nunca chegou a tirar a máscara. A decisão eleva a história a um outro patamar, e dá um novo contexto à narrativa dos quadrinhos, no sentido de trazer uma conexão direta com os temas que a série busca refletir em 2019. Não é uma alteração daquilo que já estava estabelecido, mas sim uma extensão daquele material, e uma extensão que ainda critica e questiona o próprio olhar padronizado da figura do herói na cultura pop do Século XXI.

    Basta observar, por exemplo, a distinção entre as cenas do Justiça Encapuzada de American Hero Story com as cenas do verdadeiro Justiça Encapuzada. Enquanto, no segundo episódio, vimos um trecho dele entrando em um mercado para salvar o comerciante que estava sendo roubado, aqui acompanhamos, na verdade, acontecer o oposto: o Justiça Encapuzada quebra o vidro e entra no estabelecimento para salvar os clientes, porque o criminoso, na verdade, é o próprio comerciante. Suas cenas de luta são mais próximas da realidade do que aquelas em American Hero Story, o que é perceptível até mesmo na montagem — que se utiliza muito mais de plano e contraplano na versão ficcionalizada. A pergunta que o episódio faz, nas entrelinhas destes detalhes, é: “o que achamos que significa ser um ‘herói’, no fim das contas?”

    A forma como o episódio entrelaça a história retorcida dos Homens-Minuto à trama de forças de autoridade corrompidas é o que faz o truque de estabelecer uma conexão emocional entre público e história. Nessas jornadas, Lindelof já utilizou esta mesma chave de conexão temporal e física em dois dos episódios mais memoráveis de suas outras duas grandes obras. Em Lost, foi com “The Constant” e, em The Leftovers, com “International Assassin”. É através do olhar de alguém oprimido dentro de uma estrutura rígida que “This Extraordinary Being” traz à tona todo tipo de sentimento, seja na busca de Will por justiça por ter sido vítima dos Ciclopes ainda que décadas mais tarde, ou na triste ironia de seu esquecimento e de seu apagamento na História e dentro da família. Mais do que qualquer outra coisa, dá ao oprimido o direito de sentir raiva da estrutura opressora. E como poderia ser diferente?

    OUTRAS REFLEXÕES

    - Regina King atuando apenas com o olhar sob a máscara de Justiça Encapuzada e transmitindo tanta emoção é algo que não se vê todos os dias. 

    - Depois dessa última referência a Super-Homem, Lindelof já pode pedir música no Fantástico.

    - Não por acaso, este episódio não tem aquele famoso desvio de rota para que sejamos pegos de surpresa com qualquer coisa que esteja acontecendo com Adrian Veidt (Jeremy Irons). E algo sugere que, na próxima semana, as confusões enfim serão esclarecidas.

    - Jovan Adepo, que interpreta o jovem William Reeves, é alguém em quem ficar de olho. 

     

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